Mundo
Fórum Social Mundial. 10 anos depois
EMIR SADER
Filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas
Públicas
Adital - www,adital.com.br
Dez anos depois da sua primeira edição, o Fórum Social Mundial
(FSM) volta à Africa, em um cenário mundial muito diferente daquele
de 2001. Naquele momento a hegemonia do modelo neoliberal ainda era
grande, a economia mundial não havia entrado em crise e,
principalmente, a América Latina ainda era dominada por governos
neoliberais - naquele momento com a exceção dos da Venezuela e de
Cuba.
Passada uma década, o mundo mudou. A crise econômica, nascida no
centro do capitalismo, levou as maiores potencias à estagnação, da
qual ainda não conseguem sair, enquanto os países do Sul do mundo,
que privilegiam a integração regional e não os Tratados de Livre
Comércio (TLCs) com os Estados Unidos, já a superaram e voltaram a
crescer. O modelo neoliberal perdeu legitimidade, embora siga
dominante, mesmo se com afirmações em contrário e com adequações.
Apesar disso tudo, por fraqueza de alternativas à esquerda, o mundo
se tornou mais conservador ainda do que há uma década. Mesmo a
vitória de Obama e o fim desprestigiado de Bush não alteraram essa
tendência. A Europa de Merkel, Berlusconi, Sarkozy, Cameron, das
agudas crises com os respectivos pacotes do Fundo Monetário
Internacional (FMI) em Portugal, Grécia, Irlanda, Portugal, virou
ainda mais à direita.
EXCEçãO
A grande exceção é a América Latina, não por acaso o continente
da sede original do FSM. Nesses dez anos, concomitante à realização
dos FSMs, o continente foi elegendo, um atrás do outro, presidentes
com compromissos de construção de modelos alternativos ao
neoliberalismo que derrotavam nas urnas. Nunca o continente teve
tantos governos afinados entre si e na linha pós-neoliberal de
prioridade dos processos de integração regional no lugar dos TLCs
com os Estados Unidos e prioridade das políticas sociais no lugar dos
ajustes fiscais.
No FSM anterior, em Belém, a presença mais significativa foi de
cinco presidentes, todos latino-americanos, afirmando seu compromisso
com a construção de um outro mundo possível. Todos marginais da
política tradicional: um arcebispo ligado ao movimento camponês
paraguaio, um dirigente indígena boliviano, um intelectual do
pensamento crítico equatoriano, um líder militar nacionalista
venezuelano, um líder sindical brasileiro.
Os cinco representam um movimento mais amplo -que inclui também a
Argentina, o Uruguai, El Salvador - que constrói os únicos processos
de integração- Mercosul, Unasul, Conselho Sulamericano de Defesa,
Banco do Sul, Alba, União dos Povos Latinoamericanos - que fez com
que esses países tenham avançado significativamente na sua
recuperação econômica, na diminuição das desigualdades sociais,
na extensão dos direitos sociais a toda sua população, na
afirmação de política externas soberanas. A América Latina
tornou-se a única região do mundo em que governos se identificam com
o FSM e avançam na superação do neoliberalismo.
DIREITOS
Propostas do FSM conquistaram espaços nesta década, entre as quais
talvez nenhuma como o software livre, como instrumento do direito
universal à comunicação. Alguns governos adotaram modalidades de
regulação sobre a livre circulação do capital financeiro. A
recuperação dos recursos naturais privatizados - entre eles a água
- foi realizada por governos latino-americanos. A ideia de que o
essencial não tem preço, generalizando direitos a todos, tem sido
igualmente praticada por governos pós-neoliberais na América Latina.
Mas, infelizmente, a crise econômica geral não foi capitalizada
por alternativas progressistas em outras regiões - especialmente na
Europa. Outros temas do FSM tampouco conseguiram avanços, por falta
de forças políticas, com arraigo popular e capacidade de liderança,
que pudessem transformá-las em políticas concretas.
Onde isso foi possível, onde se deram avanços reais na
construção do outro mundo possível, foi quando a força social - de
massas - e ideológica - de propostas - conseguiu se transformar em
força política concreta, disputar o poder do Estado e, a partir
daí, colocar em prática governos de superação do neoliberalismo.
Em distintos graus, isso se está dando na Bolívia, no Brasil, na
Argentina, na Venezuela, no Uruguai, no Equador. Porque implementam
medidas que superem o neoliberalismo, como a recuperação da
capacidade do Estado para induzir o crescimento econômico, para
garantir e estender direitos sociais, para defender a soberania
nacional, para regular a circulação do capital financeiro, entre
outras medidas.
PóS-NEOLIBERALISMO
Por isso o outro mundo possível, que tem necessariamente que
transcender da esfera social para a politica, encontra nos governos
pós-neoliberais da América Latina seus pontos mais avançados.
Enquanto que forças que permanecem auto-recluídas na resistência
social, se enfraqueceram, perderam transcendência ou até mesmo
desapareceram, sem conseguir colocar em prática concretamente formas
de superação do neoliberalismo.
O FSM do Senegal se dá nesse marco politico geral. No anterior, há
dois anos, predominou uma certa euforia ingênua e espontaneísta, de
que o neoliberalismo - e até mesmo o capitalismo - estariam chegando
ao seu final. Estes dois anos reforçaram o argumento de que, sem
construção de forças politicas capazes de dirigir processos
concretos, que passam pelos Estados - os existentes ou os refundados
-, não haverá avanços ou pode até mesmo acontecer retrocessos.
O outro mundo possível está sendo construído concretamente na
América Latina, mediante diferentes modalidades de governos
pós-neoliberais , que devem consistir na referência mais rica - nas
suas realizações, no seu potencial e também nos seus impasses -
para avançar nos ideais que o FSM representou há 10 anos. Mas que,
se não superar ele mesmo os limites que se autoimpôs, ameaça seguir
girando em falso, dissociado dos processos realmente existentes de
construção do outro mundo possível.
Link: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=53745
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