Carta O
Berro......................... .............................. ..repassem
17.11.11 -
Mundo
O escritor e as ditaduras
Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Adital
Tema proposto pela União Brasileira de Escritores para o Congresso Brasileiro
de Escritores, Ribeirão Preto, 14 de novembro de 2011.
Sabemos todos que a arte literária é polissêmica. As palavras têm vida própria e se multiplicam em diferentes significados.
Todo leitor capta o texto a partir de seu contexto. E então extrai, para seu enriquecimento subjetivo e cultural, o pretexto. Ou melhor, o pós-texto. Dito de outro modo, a cabeça pensa onde os pés pisam. O lugar sociocultural do leitor influi na hermenêutica do texto. Há sempre um diálogo entre leitor e narrativa. E, de certo modo, o leitor se espelha naquilo que lê. O enigma da esfinge - "Decifra-me ou te devoro” - bem se aplica ao exercício da leitura.
Um texto é tanto melhor compreendido quanto mais o leitor se encontra no contexto em que o texto foi produzido. Quem melhor tem condições de conhecer a obra de Guimarães Rosa, um mineiro ou um alemão? Certamente o alemão tem mais possibilidades de usufruir da obra de Goethe do que o mineiro.
Todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto – aquele no qual se encontra o leitor. O leitor A não coincide com o lugar sociocultural do leitor B. A mudança de lugar sociocultural provoca mudança de lugar epistêmico. Daí as diferenças hermenêuticas comportadas por um texto literário, como são exemplos a Bíblia, o Alcorão e O capital de Karl Marx.
Escrita subversiva
Não conheço nenhuma obra literária de valor que faça apologia do stalinismo, do nazismo ou mesmo do capitalismo. Há, sim, obras que, amparadas por poderes ditatoriais, alcançaram grande sucesso de vendas, como é o caso de Minha luta, de Adolf Hitler. Mas êxito comercial não significa talento ou obra de arte.
Esta a força da literatura sob ditaduras: ela traduz o sofrimento das vítimas e dialoga com as vítimas. Dá voz a quem foi silenciado. Dá vida a quem morreu assassinado. Não nasce da encomenda do poder, e sim do grito parado no ar, da garganta sufocada, do sentimento reprimido, da oceânica vocação humana à liberdade. É literalmente uma escrita subversiva, que corre "por baixo” e projeta luz crítica sobre o que se passa "por cima”.
Cinco textos clássicos redigidos e divulgados sob regimes autoritários são os quatro Evangelhos e o Apocalipse. Foram escritos sob o Império Romano. E expressam a visão das vítimas, a partir daquela vítima que mais se destacou – Jesus de Nazaré, preso, torturado e condenado à pena de morte romana, a cruz.
Nos Evangelhos são nítidas as críticas ao Império Romano e a seu preposto, o Sinédrio judaico. A começar pelo massacre das crianças decretado pelo rei Herodes. O símbolo das legiões romanas era o porco. É numa vara de porcos que Jesus ordenou aos demônios entrarem e se precipitarem no abismo (Mateus 8, 28-34). O capítulo 23 de Mateus é, todo ele, uma forte denúncia contra o poder autoritário, reforçado pela suposta sacralidade de se falar em nome de Deus. Ali as autoridades religiosas são tratadas, por Jesus, como "hipócritas! Exploradores e ladrões! Guias cegos! Sepulcros caiados! Raça de víboras! Assassinos!”
A crítica mordaz não poupa nem Herodes Antipas, que decretou a decapitação de João Batista. Quando os fariseus alertaram Jesus: "Deves ir embora daqui, porque Herodes quer te matar”, o homem de Nazaré qualificou o governador da Galileia de "raposa” (Lucas 13, 31-32).
O Apocalipse (= Revelação, tirar o véu) está distribuído em 22 capítulos. O livro se chama Apocalipse porque, ao tirar o véu, mostra ao leitor o outro lado das coisas. Aquilo que só a fé enxerga. Seus capítulos foram redigidos em diferentes épocas. Os iniciais, provavelmente escritos na província romana da Ásia (atual Turquia), no ano 64, sob a perseguição de Nero. Outros consideram que foram redigidos durante os anos em que os romanos promoveram o cerco de Jerusalém e o massacre da população da cidade (67-70). De todo modo, são textos sob tirania. Textos que brotaram da lancinante angústia de quem já não suportava tanto sofrimento e perguntava: "Até quando, Senhor?” (6, 10).
Os capítulos introdutórios do Apocalipse se espelham no livro do Êxodo. Porque a pergunta é a mesma: quando estaremos livres das garras do faraó? A diferença é que, agora, o faraó chama-se imperador romano.
João convoca seus leitores a se colocarem em nível mais elevado que o palco de sofrimentos. Convida-os a se deslocarem de seu lugar geográfico e epistêmico e ocuparem o lugar do qual Deus encara os fatos: o céu. "Ele encontrou a porta do céu aberta” (4, 1). E lá está o trono de Deus. A imagem do trono aparece 47 vezes no texto!
Ao entrar no trono, o leitor tem, dali, uma visão abrangente, que abarca inclusive o futuro, "o que deve acontecer depois” (4, 1; 1,1). E quem olha do trono de Deus relativiza todos os poderes da Terra!
O trono é envolvido pelo arco-íris, que evoca o fim do Dilúvio e a aliança de Deus com a humanidade. Ao redor do trono de Deus estão 24 tronos com 24 anciãos – são os líderes do Antigo e do Novo Testamento, os chefes das 12 tribos de Israel e os 12 apóstolos. Todos trajam roupas brancas e trazem coroas na cabeça – símbolos da vitória e da realeza.
Todo o texto do Apocalipse joga com duplo sentido. Os recursos do sonho e das visões permitem que o autor veja o passado e o futuro. Não há motivo para chorar, pois é o Cordeiro – Jesus – que conduz a história. A imagem do Cordeiro vem de Isaías 53, 7 e do cordeiro pascal, cujo sangue nos pórticos libertou os hebreus da dominação do faraó egípcio (Êxodo 12, 23). Esse díptico é constante em toda a literatura bíblica.
Na Bíblia, cavalo equivale, hoje, a um tanque de guerra, sinal do poder opressor. Os quatro cavalos do Apocalipse simbolizam as desgraças que o povo da época mais temia: cavalo branco (6, 2) – invasões de exércitos inimigos; cavalo vermelho (6, 4) – guerras e matanças; cavalo negro (6, 5) – fome e carestia; cavalo esverdeado, cor de cadáver (6, 8) – doenças, peste e morte.
Escritores vítimas da tirania
Na história universal da ignomínia figuram inúmeros escritores vítimas da tirania: o apóstolo Paulo, condenado ao cárcere; Dante, ao exílio; Galileu, à abjuração; Campanella, à masmorra; Giordano Bruno, à fogueira; Dostoievski, ao fuzilamento.
Figuram também padre Antônio Vieira, vítima da Inquisição, e Cervantes, aprisionado pelos mouros na Argélia. E ainda Gorki, Trotsky, Gramsci, Primo Levi e Soljenítsin. E Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga; Graciliano Ramos e Jorge Amado; Monteiro Lobato e Mário Lago, e Carlos Drummond de Andrade como em A noite dissolve os homens (1940). E mais recentemente, no Brasil, Augusto Boal, Flávia Schilling, Fernando Gabeira, Renato Tapajós, Thiago de Mello e Maurice Politi, entre tantos outros que, na literatura, registraram suas memórias do cárcere ou do exílio.
As memórias dos "subterrâneos da liberdade”, da perseguição ou do exílio são feitas de fragmentos, de diários inconclusos, de cartas censuradas, de romances nos quais a ficção é apenas um artifício para melhor traduzir a realidade. Tais memórias têm tríplice finalidade: a primeira, terapêutica, permitir ao autor organizar minimamente seu caos interior e, na medida do possível, objetivar seu sofrimento, aplacar as dores. Como bem expressa Ferreira Gullar em Traduzir-se:
"Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem. / Traduzir uma parte / na outra parte / - que é uma questão / de vida ou morte – / será arte?"
Fazer literatura é traduzir-se, traduzir a vertigem em linguagem, transformar o caos em cosmo, como assinala Adélia Bezerra de Meneses. "Quer percebamos claramente ou não,” - diz Antonio Candido – "o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo."
A segunda finalidade é denunciar a opressão, a ditadura, desvelando sua face cruel, monstruosa, que sequer admite a liberdade de opinião e pensamento. Por fim, a terceira é produzir obra de arte, é transmutar o real, abrir os olhos e a mente dos leitores para outras dimensões e nuances do terror, como são exemplos notáveis a Recordação da casa dos mortos, de Dostoiévski e, aqui no Brasil, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos.
Como afirmou Augusto Roa Bastos, pela boca do ditador Francia, no célebre romance Eu, o supremo, "escrever não significa converter o real em palavras, mas sim fazer com que a palavra seja real.”
Literatura de resistência
O primeiro romance escrito na América, que se tem notícia, foi Periquillo sarniento, do mexicano José Joaquín Fernández de Lizardi (1776-1827). Publicou-se o texto em 1816. Através das aventuras do protagonista, o autor descreve a vida colonial e critica veladamente o colonizador espanhol. Desde então a literatura latino-americano ficou marcada por uma íntima relação com a política.
A literatura, como toda obra de arte, é uma forma de resistência, de denúncia e de anúncio. Ela pode estar contida num livro, num manifesto ou mesmo num simples grafite gravado no muro de rua. Ali as palavras quebram o silêncio que nos é imposto, expressam nossa dor e nossa esperança, desmascaram e ridicularizam o tirano e a tirania.
"Ele (o romancista) – assinala Alfredo Bosi em seu clássico Literatura e resistência - dispõe de um espaço amplo de liberdade inventiva. A escrita trabalha não só com a memória das coisas realmente acontecidas, mas com todo o reino do possível e do imaginável. O narrador cria, segundo o seu desejo, representações do bem, representações do mal ou representações ambivalentes. Graças à exploração das técnicas do foco narrativo, o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma fenomenologia da resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio. Dá-se assim uma subjetivação intensa do fenômeno ético da resistência, o que é a figura moderna do herói antigo.” (PP. 121-122 in Literatura e resistência, Companhia das letras, SP, 2002).
A literatura se nutre de nostalgia e de utopia. E muitas vezes as duas convergem, como no verso de Castro Alves, em Poesia e mendicidade:
"Hoje o Poeta – caminheiro errante, / Que tem saudades de um país melhor”.
Excelente exemplo de arte literária que bem traduz o espanto frente à ignomínia é o brevíssimo conto de Augusto Monterroso, nascido em Honduras em 1921 e falecido no México em 2003. Seu miniconto, intitulado O dinossauro, mereceu elogios de Gárcia Márquez, Carlos Fuentes e Isaac Assimov, e tem apenas sete palavras: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”
Monterroso refugiou-se, ainda jovem, por razões políticas, na Guatemala e, posteriormente, no México. O conto do dinossauro é de seu primeiro livro, publicado em 1959, aos 38 anos, ironicamente intitulado Obras completas (e outros contos). Ali já transparecia seu estilo satírico, que ele talentosamente utilizava para criticar injustiças e discriminações.
Todos nós, escritores latino-americanos nascidos no século XX, quando acordamos o dinossauro ainda estava lá... Entre intervalos de democracia burguesa, predominaram regimes ditatoriais, jurássicos, violentos, que nos fizeram mergulhar no pesadelo captado, no Brasil, pelas obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cecília Meirelles, Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Affonso Romano de Sant’anna, Thiago de Mello e tantos outros.
Ética e imaginário
A literatura logra contornar uma questão ética que se coloca sob as ditaduras: a questão da mentira. Ali a razão política supera o valor ético. Se um dissidente ou opositor é interrogado a respeito da identidade de seus companheiros, a verdade deverá ser calada, omitida. Como diz Castoriadis, os efeitos de suas respostas não concernem apenas à sua pessoa, à sua consciência, à sua moralidade, mas à vida de muitas outras pessoas.
O escritor, entretanto, não tem, como autor, compromisso com a verdade. Como observou Platão, "os poetas mentem muito”. O compromisso do escritor é com a verossimilhança. Ele transgride as regras da sintaxe e da ordem estabelecida. Como frisou Sartre, o escritor, como intelectual, sente-se à vontade com o pensamento subversivo. Ele só tem que prestar contas a si mesmo. Ele é a sua própria autoridade. Tem o poder de caricaturar, simular, sugerir, ridicularizar o poder e exaltar as vítimas. Como faz o autor do Magnificat no evangelho de Lucas, ao proclamar que "o Senhor despediu os ricos de mãos vazias e saciou os pobres de bens; derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (1, 46-55).
O escritor suscita o diálogo entre o real e o possível, a realidade e o sonho. Como intelectual, jamais se instala na inércia de um saber adquirido. Está sempre se interrogando a respeito das concepções de mundo, dos modelos sociais, dos valores e normas que regem uma sociedade. Ele se inscreve nas fileiras do contrapoder político. Na opinião de Camus, o papel do escritor, como o do intelectual, é defender a lógica da indignação contra a lógica da resignação.
Sob ditadura, tirania ou opressão, o escritor, inconformado, lida com a mais poderosa arma do ser humano: a imaginação. Ela é capaz de suscitar o mais hediondo ato de violência ou mais solidário gesto de amor. É capaz de desfantasiar o ditador – "o rei está nu” – e fantasiar o reino da liberdade. E ao empunhar a sua pena, o escritor afirma a sua liberdade em relação a todos os poderes – civis, militares, políticos, econômicos e religiosos. Demole preconceitos. Aborda a condição humana com razão aberta, capaz de dialogar com as demais modalidades de saber.
O escritor é um indignado. A ele se aplica a máxima de Terêncio: "Nada do que é humano me é indiferente”. Pois se recusa a aceitar o mundo tal como ele é ou aparece. Contesta-o, critica-o, amplia suas potencialidades, transforma-o através de sua imaginação, povoa-o com seus personagens, transubstancia-o por sua arte.
Quando postado diante do pelotão de fuzilamento, em 1849, Dostoiévski se convenceu do que, mais tarde, colocaria na boca de um de seus personagens: "Podem destruir tudo, menos a mais poderosa arma que um homem possui: a sua consciência.”
Toda obra literária é uma apologia à liberdade de consciência. E é na consciência que o artista se define como clone de Deus. Pois transforma a fantasia em realidade, o sonho em narrativa, a intuição em arte. Porque nada existe que, antes de se tornar real, não tenha sido concebido pela fantasia. Da roupa que vestimos aos veículos nos quais trafegamos, dos sapatos que calçamos à moradia na qual habitamos, tudo brotou da fantasia. Daí o impacto da literatura, filha dileta do imaginário. Ela é uma arte ontologicamente subversiva e subvertida, brota do chão da vida, dos porões de nosso psiquismo, de nossas reações atávicas ao que ameaça ou suprime a liberdade.
É curioso constatar que mesmo autores declaradamente simpáticos a ditaduras - como o foram Fernando Pessoa em relação a Salazar; Ezra Pound em relação a Mussolini; Céline em relação a Hitler; Borges em relação a Pinochet e aos generais argentinos -, à revelia de suas convicções políticas conservadoras não deixaram de produzir obras de forte impacto subversivo, crítico, páginas que nos induzem a ansiar por mais liberdade, o que não deve ser confundido com liberalismo ou neoliberalismo. Como predisse o profeta Isaías, não há verdadeira liberdade se ela não estiver irmanada com a justiça, de modo a gerar paz.
Tenhamos sempre presente, entretanto, que a literatura não tem que ser de esquerda ou de direita, a favor ou contra o governo vigente. Tem que ser bela, obra de arte, signo estético, sem o que perde valor. Não se exija, portanto, literatura engajada, e sim de qualidade, capaz de suscitar em nós leitores um novo olhar sobre o real. Do escritor, sim, pode-se esperar engajamento, compromisso com a justiça, empenho contra a opressão. Até porque, em sua obra, ele nada mais faz do que nos abrir a outros mundos possíveis, através do imaginário que não conhece limites. Seu campo de trabalho é simplesmente o infinito.
[Frei Betto é escritor, autor do romance "Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org - twitter:@freibetto.
Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
Sabemos todos que a arte literária é polissêmica. As palavras têm vida própria e se multiplicam em diferentes significados.
Todo leitor capta o texto a partir de seu contexto. E então extrai, para seu enriquecimento subjetivo e cultural, o pretexto. Ou melhor, o pós-texto. Dito de outro modo, a cabeça pensa onde os pés pisam. O lugar sociocultural do leitor influi na hermenêutica do texto. Há sempre um diálogo entre leitor e narrativa. E, de certo modo, o leitor se espelha naquilo que lê. O enigma da esfinge - "Decifra-me ou te devoro” - bem se aplica ao exercício da leitura.
Um texto é tanto melhor compreendido quanto mais o leitor se encontra no contexto em que o texto foi produzido. Quem melhor tem condições de conhecer a obra de Guimarães Rosa, um mineiro ou um alemão? Certamente o alemão tem mais possibilidades de usufruir da obra de Goethe do que o mineiro.
Todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto – aquele no qual se encontra o leitor. O leitor A não coincide com o lugar sociocultural do leitor B. A mudança de lugar sociocultural provoca mudança de lugar epistêmico. Daí as diferenças hermenêuticas comportadas por um texto literário, como são exemplos a Bíblia, o Alcorão e O capital de Karl Marx.
Escrita subversiva
Não conheço nenhuma obra literária de valor que faça apologia do stalinismo, do nazismo ou mesmo do capitalismo. Há, sim, obras que, amparadas por poderes ditatoriais, alcançaram grande sucesso de vendas, como é o caso de Minha luta, de Adolf Hitler. Mas êxito comercial não significa talento ou obra de arte.
Esta a força da literatura sob ditaduras: ela traduz o sofrimento das vítimas e dialoga com as vítimas. Dá voz a quem foi silenciado. Dá vida a quem morreu assassinado. Não nasce da encomenda do poder, e sim do grito parado no ar, da garganta sufocada, do sentimento reprimido, da oceânica vocação humana à liberdade. É literalmente uma escrita subversiva, que corre "por baixo” e projeta luz crítica sobre o que se passa "por cima”.
Cinco textos clássicos redigidos e divulgados sob regimes autoritários são os quatro Evangelhos e o Apocalipse. Foram escritos sob o Império Romano. E expressam a visão das vítimas, a partir daquela vítima que mais se destacou – Jesus de Nazaré, preso, torturado e condenado à pena de morte romana, a cruz.
Nos Evangelhos são nítidas as críticas ao Império Romano e a seu preposto, o Sinédrio judaico. A começar pelo massacre das crianças decretado pelo rei Herodes. O símbolo das legiões romanas era o porco. É numa vara de porcos que Jesus ordenou aos demônios entrarem e se precipitarem no abismo (Mateus 8, 28-34). O capítulo 23 de Mateus é, todo ele, uma forte denúncia contra o poder autoritário, reforçado pela suposta sacralidade de se falar em nome de Deus. Ali as autoridades religiosas são tratadas, por Jesus, como "hipócritas! Exploradores e ladrões! Guias cegos! Sepulcros caiados! Raça de víboras! Assassinos!”
A crítica mordaz não poupa nem Herodes Antipas, que decretou a decapitação de João Batista. Quando os fariseus alertaram Jesus: "Deves ir embora daqui, porque Herodes quer te matar”, o homem de Nazaré qualificou o governador da Galileia de "raposa” (Lucas 13, 31-32).
O Apocalipse (= Revelação, tirar o véu) está distribuído em 22 capítulos. O livro se chama Apocalipse porque, ao tirar o véu, mostra ao leitor o outro lado das coisas. Aquilo que só a fé enxerga. Seus capítulos foram redigidos em diferentes épocas. Os iniciais, provavelmente escritos na província romana da Ásia (atual Turquia), no ano 64, sob a perseguição de Nero. Outros consideram que foram redigidos durante os anos em que os romanos promoveram o cerco de Jerusalém e o massacre da população da cidade (67-70). De todo modo, são textos sob tirania. Textos que brotaram da lancinante angústia de quem já não suportava tanto sofrimento e perguntava: "Até quando, Senhor?” (6, 10).
Os capítulos introdutórios do Apocalipse se espelham no livro do Êxodo. Porque a pergunta é a mesma: quando estaremos livres das garras do faraó? A diferença é que, agora, o faraó chama-se imperador romano.
João convoca seus leitores a se colocarem em nível mais elevado que o palco de sofrimentos. Convida-os a se deslocarem de seu lugar geográfico e epistêmico e ocuparem o lugar do qual Deus encara os fatos: o céu. "Ele encontrou a porta do céu aberta” (4, 1). E lá está o trono de Deus. A imagem do trono aparece 47 vezes no texto!
Ao entrar no trono, o leitor tem, dali, uma visão abrangente, que abarca inclusive o futuro, "o que deve acontecer depois” (4, 1; 1,1). E quem olha do trono de Deus relativiza todos os poderes da Terra!
O trono é envolvido pelo arco-íris, que evoca o fim do Dilúvio e a aliança de Deus com a humanidade. Ao redor do trono de Deus estão 24 tronos com 24 anciãos – são os líderes do Antigo e do Novo Testamento, os chefes das 12 tribos de Israel e os 12 apóstolos. Todos trajam roupas brancas e trazem coroas na cabeça – símbolos da vitória e da realeza.
Todo o texto do Apocalipse joga com duplo sentido. Os recursos do sonho e das visões permitem que o autor veja o passado e o futuro. Não há motivo para chorar, pois é o Cordeiro – Jesus – que conduz a história. A imagem do Cordeiro vem de Isaías 53, 7 e do cordeiro pascal, cujo sangue nos pórticos libertou os hebreus da dominação do faraó egípcio (Êxodo 12, 23). Esse díptico é constante em toda a literatura bíblica.
Na Bíblia, cavalo equivale, hoje, a um tanque de guerra, sinal do poder opressor. Os quatro cavalos do Apocalipse simbolizam as desgraças que o povo da época mais temia: cavalo branco (6, 2) – invasões de exércitos inimigos; cavalo vermelho (6, 4) – guerras e matanças; cavalo negro (6, 5) – fome e carestia; cavalo esverdeado, cor de cadáver (6, 8) – doenças, peste e morte.
Escritores vítimas da tirania
Na história universal da ignomínia figuram inúmeros escritores vítimas da tirania: o apóstolo Paulo, condenado ao cárcere; Dante, ao exílio; Galileu, à abjuração; Campanella, à masmorra; Giordano Bruno, à fogueira; Dostoievski, ao fuzilamento.
Figuram também padre Antônio Vieira, vítima da Inquisição, e Cervantes, aprisionado pelos mouros na Argélia. E ainda Gorki, Trotsky, Gramsci, Primo Levi e Soljenítsin. E Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga; Graciliano Ramos e Jorge Amado; Monteiro Lobato e Mário Lago, e Carlos Drummond de Andrade como em A noite dissolve os homens (1940). E mais recentemente, no Brasil, Augusto Boal, Flávia Schilling, Fernando Gabeira, Renato Tapajós, Thiago de Mello e Maurice Politi, entre tantos outros que, na literatura, registraram suas memórias do cárcere ou do exílio.
As memórias dos "subterrâneos da liberdade”, da perseguição ou do exílio são feitas de fragmentos, de diários inconclusos, de cartas censuradas, de romances nos quais a ficção é apenas um artifício para melhor traduzir a realidade. Tais memórias têm tríplice finalidade: a primeira, terapêutica, permitir ao autor organizar minimamente seu caos interior e, na medida do possível, objetivar seu sofrimento, aplacar as dores. Como bem expressa Ferreira Gullar em Traduzir-se:
"Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem. / Traduzir uma parte / na outra parte / - que é uma questão / de vida ou morte – / será arte?"
Fazer literatura é traduzir-se, traduzir a vertigem em linguagem, transformar o caos em cosmo, como assinala Adélia Bezerra de Meneses. "Quer percebamos claramente ou não,” - diz Antonio Candido – "o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo."
A segunda finalidade é denunciar a opressão, a ditadura, desvelando sua face cruel, monstruosa, que sequer admite a liberdade de opinião e pensamento. Por fim, a terceira é produzir obra de arte, é transmutar o real, abrir os olhos e a mente dos leitores para outras dimensões e nuances do terror, como são exemplos notáveis a Recordação da casa dos mortos, de Dostoiévski e, aqui no Brasil, Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos.
Como afirmou Augusto Roa Bastos, pela boca do ditador Francia, no célebre romance Eu, o supremo, "escrever não significa converter o real em palavras, mas sim fazer com que a palavra seja real.”
Literatura de resistência
O primeiro romance escrito na América, que se tem notícia, foi Periquillo sarniento, do mexicano José Joaquín Fernández de Lizardi (1776-1827). Publicou-se o texto em 1816. Através das aventuras do protagonista, o autor descreve a vida colonial e critica veladamente o colonizador espanhol. Desde então a literatura latino-americano ficou marcada por uma íntima relação com a política.
A literatura, como toda obra de arte, é uma forma de resistência, de denúncia e de anúncio. Ela pode estar contida num livro, num manifesto ou mesmo num simples grafite gravado no muro de rua. Ali as palavras quebram o silêncio que nos é imposto, expressam nossa dor e nossa esperança, desmascaram e ridicularizam o tirano e a tirania.
"Ele (o romancista) – assinala Alfredo Bosi em seu clássico Literatura e resistência - dispõe de um espaço amplo de liberdade inventiva. A escrita trabalha não só com a memória das coisas realmente acontecidas, mas com todo o reino do possível e do imaginável. O narrador cria, segundo o seu desejo, representações do bem, representações do mal ou representações ambivalentes. Graças à exploração das técnicas do foco narrativo, o romancista poderá levar ao primeiro plano do texto ficcional toda uma fenomenologia da resistência do eu aos valores ou antivalores do seu meio. Dá-se assim uma subjetivação intensa do fenômeno ético da resistência, o que é a figura moderna do herói antigo.” (PP. 121-122 in Literatura e resistência, Companhia das letras, SP, 2002).
A literatura se nutre de nostalgia e de utopia. E muitas vezes as duas convergem, como no verso de Castro Alves, em Poesia e mendicidade:
"Hoje o Poeta – caminheiro errante, / Que tem saudades de um país melhor”.
Excelente exemplo de arte literária que bem traduz o espanto frente à ignomínia é o brevíssimo conto de Augusto Monterroso, nascido em Honduras em 1921 e falecido no México em 2003. Seu miniconto, intitulado O dinossauro, mereceu elogios de Gárcia Márquez, Carlos Fuentes e Isaac Assimov, e tem apenas sete palavras: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.”
Monterroso refugiou-se, ainda jovem, por razões políticas, na Guatemala e, posteriormente, no México. O conto do dinossauro é de seu primeiro livro, publicado em 1959, aos 38 anos, ironicamente intitulado Obras completas (e outros contos). Ali já transparecia seu estilo satírico, que ele talentosamente utilizava para criticar injustiças e discriminações.
Todos nós, escritores latino-americanos nascidos no século XX, quando acordamos o dinossauro ainda estava lá... Entre intervalos de democracia burguesa, predominaram regimes ditatoriais, jurássicos, violentos, que nos fizeram mergulhar no pesadelo captado, no Brasil, pelas obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cecília Meirelles, Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Affonso Romano de Sant’anna, Thiago de Mello e tantos outros.
Ética e imaginário
A literatura logra contornar uma questão ética que se coloca sob as ditaduras: a questão da mentira. Ali a razão política supera o valor ético. Se um dissidente ou opositor é interrogado a respeito da identidade de seus companheiros, a verdade deverá ser calada, omitida. Como diz Castoriadis, os efeitos de suas respostas não concernem apenas à sua pessoa, à sua consciência, à sua moralidade, mas à vida de muitas outras pessoas.
O escritor, entretanto, não tem, como autor, compromisso com a verdade. Como observou Platão, "os poetas mentem muito”. O compromisso do escritor é com a verossimilhança. Ele transgride as regras da sintaxe e da ordem estabelecida. Como frisou Sartre, o escritor, como intelectual, sente-se à vontade com o pensamento subversivo. Ele só tem que prestar contas a si mesmo. Ele é a sua própria autoridade. Tem o poder de caricaturar, simular, sugerir, ridicularizar o poder e exaltar as vítimas. Como faz o autor do Magnificat no evangelho de Lucas, ao proclamar que "o Senhor despediu os ricos de mãos vazias e saciou os pobres de bens; derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (1, 46-55).
O escritor suscita o diálogo entre o real e o possível, a realidade e o sonho. Como intelectual, jamais se instala na inércia de um saber adquirido. Está sempre se interrogando a respeito das concepções de mundo, dos modelos sociais, dos valores e normas que regem uma sociedade. Ele se inscreve nas fileiras do contrapoder político. Na opinião de Camus, o papel do escritor, como o do intelectual, é defender a lógica da indignação contra a lógica da resignação.
Sob ditadura, tirania ou opressão, o escritor, inconformado, lida com a mais poderosa arma do ser humano: a imaginação. Ela é capaz de suscitar o mais hediondo ato de violência ou mais solidário gesto de amor. É capaz de desfantasiar o ditador – "o rei está nu” – e fantasiar o reino da liberdade. E ao empunhar a sua pena, o escritor afirma a sua liberdade em relação a todos os poderes – civis, militares, políticos, econômicos e religiosos. Demole preconceitos. Aborda a condição humana com razão aberta, capaz de dialogar com as demais modalidades de saber.
O escritor é um indignado. A ele se aplica a máxima de Terêncio: "Nada do que é humano me é indiferente”. Pois se recusa a aceitar o mundo tal como ele é ou aparece. Contesta-o, critica-o, amplia suas potencialidades, transforma-o através de sua imaginação, povoa-o com seus personagens, transubstancia-o por sua arte.
Quando postado diante do pelotão de fuzilamento, em 1849, Dostoiévski se convenceu do que, mais tarde, colocaria na boca de um de seus personagens: "Podem destruir tudo, menos a mais poderosa arma que um homem possui: a sua consciência.”
Toda obra literária é uma apologia à liberdade de consciência. E é na consciência que o artista se define como clone de Deus. Pois transforma a fantasia em realidade, o sonho em narrativa, a intuição em arte. Porque nada existe que, antes de se tornar real, não tenha sido concebido pela fantasia. Da roupa que vestimos aos veículos nos quais trafegamos, dos sapatos que calçamos à moradia na qual habitamos, tudo brotou da fantasia. Daí o impacto da literatura, filha dileta do imaginário. Ela é uma arte ontologicamente subversiva e subvertida, brota do chão da vida, dos porões de nosso psiquismo, de nossas reações atávicas ao que ameaça ou suprime a liberdade.
É curioso constatar que mesmo autores declaradamente simpáticos a ditaduras - como o foram Fernando Pessoa em relação a Salazar; Ezra Pound em relação a Mussolini; Céline em relação a Hitler; Borges em relação a Pinochet e aos generais argentinos -, à revelia de suas convicções políticas conservadoras não deixaram de produzir obras de forte impacto subversivo, crítico, páginas que nos induzem a ansiar por mais liberdade, o que não deve ser confundido com liberalismo ou neoliberalismo. Como predisse o profeta Isaías, não há verdadeira liberdade se ela não estiver irmanada com a justiça, de modo a gerar paz.
Tenhamos sempre presente, entretanto, que a literatura não tem que ser de esquerda ou de direita, a favor ou contra o governo vigente. Tem que ser bela, obra de arte, signo estético, sem o que perde valor. Não se exija, portanto, literatura engajada, e sim de qualidade, capaz de suscitar em nós leitores um novo olhar sobre o real. Do escritor, sim, pode-se esperar engajamento, compromisso com a justiça, empenho contra a opressão. Até porque, em sua obra, ele nada mais faz do que nos abrir a outros mundos possíveis, através do imaginário que não conhece limites. Seu campo de trabalho é simplesmente o infinito.
[Frei Betto é escritor, autor do romance "Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. http://www.freibetto.org - twitter:@freibetto.
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