Carta O
Berro......................... .............................. ..repassem
Carta de Paulo Freire ao professores
Paulo
Freire
Ensinar,
aprender:
leitura do mundo, leitura da palavra
leitura do mundo, leitura da palavra
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NENHUM TEMA
mais adequado para constituir-se em objeto desta primeira carta a quem ousa
ensinar do que a significação crítica desse ato, assim como a significação
igualmente crítica de aprender. É que não existe ensinar sem
aprender e com isto eu quero dizer mais do que diria se dissesse que o
ato de ensinar exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Quero dizer
que ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina aprende, de
um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido e, de outro, porque,
observado a maneira como a curiosidade do aluno aprendiz trabalha para apreender
o ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir
incertezas, acertos, equívocos.
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O aprendizado
do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através da retificação que o
aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao ensinar se
verifica à medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente
disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que procura
envolver-se com a curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas,
que ela os faz percorrer. Alguns desses caminhos e algumas dessas veredas, que a
curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre, estão grávidas de
sugestões, de perguntas que não foram percebidas antes pelo ensinante. Mas
agora, ao ensinar, não como um burocrata da mente, mas reconstruindo os
caminhos de sua curiosidade — razão por que seu corpo consciente,
sensível, emocionado, se abre às adivinhações dos alunos, à sua
ingenuidade e à sua criatividade — o ensinante que assim atua tem, no
seu ensinar, um momento rico de seu aprender. O ensinante aprende primeiro a
ensinar mas aprende a ensinar ao ensinar algo que é reaprendido por estar sendo
ensinado.
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O fato, porém,
de que ensinar ensina o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve
significar, de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência
para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética,
política e profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se
capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta
atividade exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem
processos permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida,
vai deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação
que se funda na análise crítica de sua prática.
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Partamos da
experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem se prepara para a tarefa
docente, que envolve necessariamente estudar. Obviamente, minha
intenção não é escrever prescrições que devam ser rigorosamente seguidas, o que
significaria uma chocante contradição com tudo o que falei até agora. Pelo
contrário, o que me interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste livro,
é desafiar seus leitores e leitoras em torno de certos pontos ou aspectos,
insistindo em que há sempre algo diferente a fazer na nossa cotidianidade
educativa, quer dela participemos como aprendizes, e portanto ensinantes, ou
como ensinantes e, por isso, aprendizes também.
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Não gostaria,
assim, sequer, de dar a impressão de estar deixando absolutamente clara a
questão do estudar, do ler, do observar, do
reconhecer as relações entre os objetos para conhecê-los. Estarei
tentando clarear alguns dos pontos que merecem nossa atenção na compreensão
crítica desses processos.
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Comecemos por
estudar, que envolvendo o ensinar do ensinante, envolve também
de um lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a
aprendizagem do aprendiz que se prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber
para melhor ensinar hoje ou, de outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda,
se acha nos começos de sua escolarização.
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Enquanto
preparação do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro lugar, um que-fazer
crítico, criador, recriador, não importa que eu nele me engaje através da
leitura de um texto que trata ou discute um certo conteúdo que me foi proposto
pela escola ou se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um
certo acontecimentos social ou natural e que, como necessidade da própria
reflexão, me conduz à leitura de textos que minha curiosidade e minha
experiência intelectual me sugerem ou que me são sugeridos por outros.
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Assim, em
nível de uma posição crítica, a que não dicotomiza o saber do senso comum do
outro saber, mais sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos
contrários, o ato de estudar implica sempre o de ler, mesmo que neste não se
esgote. De ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo
anteriormente feita. Mas ler não é puro entretenimento nem tampouco um exercício
de memorização mecânica de certos trechos do texto.
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Se, na
verdade, estou estudando e estou lendo seriamente, não posso ultra-passar uma
página se não consegui com relativa clareza, ganhar sua significação. Minha
saída não está em memorizar porções de períodos lendo mecanicamente duas, três,
quatro vezes pedaços do texto fechando os olhos e tentando repeti-las como se
sua fixação puramente maquinal me desse o conhecimento de que preciso.
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Ler é uma
operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou estuda
autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a
forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da
leitura, sujeito do processo de conhecer em que se acha. Ler é procurar buscar
criar a compreensão do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a
importância do ensino correto da leitura e da escrita. É que ensinar a ler é
engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da
compreensão e da comunicação.
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E a
experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela
capazes de associar, jamais dicotomizar, os conceitos emergentes da
experiência escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade. Um
exercício crítico sempre exigido pela leitura e necessariamente pela escuta é o
de como nos darmos facilmente à passagem da experiência sensorial que
caracteriza a cotidianidade à generalização que se opera na linguagem
escolar e desta ao concreto tangível. Uma das formas de realizarmos este
exercício consiste na prática que me venho referindo como "leitura da leitura
anterior do mundo", entendendo-se aqui como "leitura do mundo" a "leitura" que
precede a leitura da palavra e que perseguindo igualmente a compreensão do
objeto se faz no domínio da cotidianidade. A leitura da palavra, fazendo-se
também em busca da compreensão do texto e, portanto, dos objetos nele referidos,
nos remete agora à leitura anterior do mundo. O que me parece fundamental deixar
claro é que a leitura do mundo que é feita a partir da experiência sensorial não
basta. Mas, por outro lado, não pode ser desprezada como inferior pela
leitura feita a partir do mundo abstrato dos conceitos que vai da generalização
ao tangível.
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Certa vez, uma
alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de cultura, uma codificação
(1) que representava um homem que,
trabalhando o barro, criava com as mãos, um jarro. Discutia-se, através da
"leitura" de uma série de codificações que, no fundo, são representações da
realidade concreta, o que é cultura. O conceito de cultura já havia sido
apreendido pelo grupo através do esforço da compreensão que caracteriza
a leitura do mundo e/ou da palavra. Na sua experiência anterior, cuja
memória ela guardava no seu corpo, sua compreensão do processo em que o
homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão gestada sensorialmente,
lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho com que, concretamente, se
sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto, produto do trabalho que,
vendido, viabilizava sua vida e a de sua família.
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Agora,
ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava um passo
fundamental: alcançava a capacidade de generalizar que caracteriza a
"experiência escolar". Criar o jarro como o trabalho transformador sobre o barro
não era apenas a forma de sobreviver, mas também de fazer cultura, de
fazer arte. Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e
dos que-fazeres no mundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura e
orgulhosa: "Faço cultura. Faço isto".
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Paulo
Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921 em Recife,
Pernambuco. Aprendeu a ler e a escrever com os pais, à sombra das árvores do
quintal da casa em que nasceu. Tinha oito anos quando a família teve que se
mudar para Jaboatão, a 18 km de Recife. Aos 13 anos perdeu o pai e seus estudos
tiveram que ser adiados. Entrou no ginásio com 16 anos. Aos 20 conseguiu uma
vaga na Faculdade de Direito do Recife.
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O estudo da linguagem do povo foi um dos pontos de partida da elaboração pedagógica de Paulo Freire, para o que também foi muito significativo o seu envolvimento com o Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife. Foi um dos fundadores do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife e seu primeiro diretor. Através desse trabalho elaborou os primeiros estudos de um novo método de alfabetização, que expôs em 1958. As primeiras experiências do Método Paulo Freire começaram na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde 300 trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias. No ano seguinte, foi convidado pelo presidente João Goulart para repensar a alfabetização de adultos em âmbito nacional. O golpe militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a mobilização popular.
O estudo da linguagem do povo foi um dos pontos de partida da elaboração pedagógica de Paulo Freire, para o que também foi muito significativo o seu envolvimento com o Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife. Foi um dos fundadores do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife e seu primeiro diretor. Através desse trabalho elaborou os primeiros estudos de um novo método de alfabetização, que expôs em 1958. As primeiras experiências do Método Paulo Freire começaram na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde 300 trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias. No ano seguinte, foi convidado pelo presidente João Goulart para repensar a alfabetização de adultos em âmbito nacional. O golpe militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a mobilização popular.
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Paulo Freire foi preso, acusado de comunista. Foram 16 anos de exílio, dolorosos, mas também muito produtivos: uma estadia de cinco anos no Chile como consultor da Unesco no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária; uma mudança para Genebra, na Suíça em 1970, para trabalhar como consultor do Conselho Mundial de Igejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, e ajudou em campanhas no Peru e Nicaraguá; em 1980, voltou definitivamente ao país, passando a ser professor da PUC-SP e da Univesidade de Campinas (Unicamp). Uma das experiências significativas de Paulo Freire foi ter trabalhado como secretário da Educação da Prefeitura de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (PT), entre 1989 e 1991. Paulo Freire morreu no dia 2 de maio de 1997, aos 76 anos de idade, em plena atividade de educador e de pensador. Estava casado com Ana Maria (Nita) Araújo Freire, também educadora.
Paulo Freire foi preso, acusado de comunista. Foram 16 anos de exílio, dolorosos, mas também muito produtivos: uma estadia de cinco anos no Chile como consultor da Unesco no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária; uma mudança para Genebra, na Suíça em 1970, para trabalhar como consultor do Conselho Mundial de Igejas, onde desenvolveu programas de alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, e ajudou em campanhas no Peru e Nicaraguá; em 1980, voltou definitivamente ao país, passando a ser professor da PUC-SP e da Univesidade de Campinas (Unicamp). Uma das experiências significativas de Paulo Freire foi ter trabalhado como secretário da Educação da Prefeitura de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (PT), entre 1989 e 1991. Paulo Freire morreu no dia 2 de maio de 1997, aos 76 anos de idade, em plena atividade de educador e de pensador. Estava casado com Ana Maria (Nita) Araújo Freire, também educadora.
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É autor dos livros Educação como prática da libedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992; Política e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora sim, Tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D'Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho D'Água, 1995. Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. Pedagogia da indignação. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.
É autor dos livros Educação como prática da libedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992; Política e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora sim, Tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D'Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho D'Água, 1995. Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. Pedagogia da indignação. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.
Noutra ocasião
presenciei experiência semelhante do ponto de vista da inteligência do
comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outro trabalho mas não
faz mal que o retome agora. Me achava na Ilha de São Tomé, na
África Ocidental, no Golfo da Guiné. Participava com
educadores e educadoras nacionais, do primeiro curso de formação para
alfabetizadores.
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Havia sido
escolhido pela equipe nacional um pequeno povoado, Porto Mont, região de pesca,
para ser o centro das atividades de formação. Havia sugerido aos nacionais que a
formação dos educadores e educadoras se fizesse não seguindo certos métodos
tradicionais que separam prática de teoria. Nem tampouco através de nenhuma
forma de trabalho essencialmente dicotomizante de teoria e prática e que ou
menospreza a teoria, negando-lhe qualquer importância, enfatizando
exclusivamente a prática, a única a valer, ou negando a
prática fixando-se só na teoria. Pelo contrário, minha
intenção era que, desde o começo do curso, vivêssemos a relação contraditória
entre prática e teoria, que será objeto de análise de uma de minhas
cartas.
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Recusava, por
isso mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados os primeiros momentos
do curso para exposições ditas teóricas sobre matéria fundamental de formação
dos futuros educadores e educadoras. Momento para discursos de algumas pessoas,
as consideradas mais capazes para falar aos outros.
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Minha
convicção era outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numa única manhã, se
falasse de alguns conceitos-chave — codificação, decodificação, por
exemplo — como se estivéssemos num tempo de apresentações,
sem, contudo, nem de longe imaginar que as apresentações de certos
conceitos fossem já suficientes para o domínio da compreensão em torno deles. A
discussão crítica sobre a prática em que se engajariam é o que o faria.
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Assim, a idéia
básica, aceita e posta em prática, é que os jovens que se preparariam para a
tarefa de educadoras e educadores populares deveriam coordenar a discussão em
torno de codificações num círculo de cultura com 25 participantes. Os
participantes do círculo de cultura estavam cientes de que se tratava de um
trabalho de afirmação de educadores. Discutiu-se com eles antes sua tarefa
política de nos ajudar no esforço de formação, sabendo que iam trabalhar com
jovens em pleno processo de sua formação. Sabiam que eles, assim como os jovens
a serem formados, jamais tinham feito o que iam fazer. A única diferença que os
marcava é que os participantes liam apenas o mundo enquanto os jovens a serem
formados para a tarefa de educadores liam já a palavra também. Jamais, contudo,
haviam discutido uma codificação assim como jamais haviam tido a mais mínima
experiência alfabetizando alguém.
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Em cada tarde
do curso com duas horas de trabalho com os 25 participantes, quatro candidatos
assumiam a direção dos debates. Os responsáveis pelo curso assistiam em
silêncio, sem interferir, fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário de
avaliação de formação, de quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros e os
acertos dos candidatos, na presença do grupo inteiro, desocultando-se com eles a
teoria que se achava na sua prática.
Dificilmente
se repetiam os erros e os equívocos que haviam sido cometidos e analisados. A
teoria emergia molhada da prática vivida.
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Foi exatamente
numa das tardes de formação que, durante a discussão de uma codificação que
retratava Porto Mont, com suas casinhas alinhadas à margem da praia, em frente
ao mar, com um pescador que deixava seu barco com um peixe na mão, que dois dos
participantes, como se houvessem combinado, se levantaram, andaram até a janela
da escola em que estávamos e olhando Porto Mont lá longe, disseram, de frente
novamente para a codificação que representava o povoado: "É. Porto Mont é assim
e não sabíamos".
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Até então, sua
"leitura" do lugarejo, de seu mundo particular, uma "leitura" feita
demasiadamente próxima do "texto", que era o contexto do povoado, não lhes havia
permitido ver Porto Mont como ele era. Havia uma certa "opacidade" que
cobria e encobria Porto Mont. A experiência que estavam fazendo de "tomar
distância" do objeto, no caso, da codificação de Porto Mont, lhes
possibilitava uma nova leitura mais fiel ao "texto", quer dizer, ao
contexto de Porto Mont. A "tomada de distância" que a "leitura" da
codificação lhes possibilitou os aproximou mais de Porto Mont como
"texto" sendo lido. Esta nova leitura refez a leitura anterior, daí que hajam
dito: "É. Porto Mont é assim e não sabíamos". Imersos na realidade de
seu pequeno mundo, não eram capazes de vê-la. "Tomando distância" dela,
emergiram e, assim, a viram como até então jamais a tinham visto.
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Estudar é
desocultar, é ganhar a compreensão mais exata do objeto, é perceber
suas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se
arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria.
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Por isso
também é que ensinar não pode ser um puro processo, como tanto tenho
dito, de transferência de conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência
mecânica de que resulte a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo
crítico corresponde um ensino igualmente crítico que demanda necessariamente uma
forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do
mundo, leitura do contexto.
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A forma
crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo
está, de um lado, na não negação da linguagem simples, "desarmada", ingênua, na
sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianidade,
no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se chama
de "linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se em torno de
conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma crítica de compreender e de
realizar a leitura do texto e a do contexto não exclui nenhuma da duas formas de
linguagem ou de sintaxe. Reconhece, todavia, que o escritor que usa a linguagem
científica, acadêmica, ao dever procurar tornar-se acessível, menos fechado,
mais claro, menos difícil, mais simples, não pode ser simplista.
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Ninguém que
lê, que estuda, tem o direito de abandonar a leitura de um texto como difícil
porque não entendeu o que significa, por exemplo, a palavra
epistemologia.
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Assim como um
pedreiro não pode prescindir de um conjunto de instrumentos de trabalho, sem os
quais não levanta as paredes da casa que está sendo construída, assim também o
leitor estudioso precisa de instrumentos fundamentais, sem os quais não pode ler
ou escrever com eficácia. Dicionários (2), entre eles o etimológico, o de
regimes de verbos, o de regimes de substantivos e adjetivos, o filosófico, o de
sinônimos e de antônimos, enciclopédias. A leitura comparativa de texto, de
outro autor que trate o mesmo tema cuja linguagem seja menos complexa.
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Usar esses
instrumentos de trabalho não é, como às vezes se pensa, uma perda de tempo. O
tempo que eu uso quando leio ou escrevo ou escrevo e leio, na consulta de
dicionários e enciclopédias, na leitura de capítulos, ou trechos de livros que
podem me ajudar na análise mais crítica de um tema — é tempo
fundamental de meu trabalho, de meu ofício gostoso de ler ou de escrever.
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Enquanto
leitores, não temos o direito de esperar, muito menos de exigir, que os
escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender o
escrito, explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que
quiseram dizer com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever
simples, escrever leve, é facilitar e não dificultar a compreensão do
leitor, mas não dar a ele as coisas feitas e prontas.
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A compreensão
do que se está lendo, estudando, não estala assim, de repente, como se fosse um
milagre. A compreensão é trabalhada, é forjada, por quem lê, por quem estuda
que, sendo sujeito dela, se deve instrumentar para melhor fazê-la. Por isso
mesmo, ler, estudar, é um trabalho paciente, desafiador,
persistente.
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Não é tarefa
para gente demasiado apressada ou pouco humilde que, em lugar de assumir suas
deficiências, as transfere para o autor ou autora do livro, considerado como
impossível de ser estudado.
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É preciso
deixar claro, também, que há uma relação necessária entre o nível do conteúdo do
livro e o nível da atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a experiência
intelectual do autor e do leitor. A compreensão do que se lê tem que ver com
essa relação. Quando a distância entre aqueles níveis é demasiado grande, quanto
um não tem nada que ver com o outro, todo esforço em busca da
compreensão é inútil. Não está havendo, neste caso, uma consonância
entre o indispensável tratamento dos temas pelo autor do livro e a capacidade de
apreensão por parte do leitor da linguagem necessária àquele tratamento. Por
isso mesmo é que estudar é uma preparação para conhecer, é um exercício paciente
e impaciente de quem, não pretendendo tudo de uma vez, luta para fazer a
vez de conhecer.
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A questão do
uso necessário de instrumentos indispensáveis à nossa leitura e ao nosso
trabalho de escrever levanta o problema do poder aquisitivo do estudante e das
professoras e professores em face dos custos elevados para obter dicionários
básicos da língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar todo esse
material é um direito que têm alunos e professores a que corresponde o dever das
escolas de fazer-lhes possível a consulta, equipando ou criando suas
bibliotecas, com horários realistas de estudo. Reivindicar esse material é um
direito e um dever de professores e estudantes.
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Gostaria de
voltar a algo a que fiz referência anteriormente: a relação entre ler e
escrever, entendidos como processos que não se podem separar. Como processos que
se devem organizar de tal modo que ler e escrever sejam
percebidos como necessários para algo, como sendo alguma coisa de que a criança,
como salientou Vygotsky (3), necessita e nós também.
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Em primeiro
lugar, a oralidade precede a grafia mas a traz em si desde o primeiro momento em
que os seres humanos se tornaram socialmente capazes de ir exprimindo-se através
de símbolos que diziam algo de seus sonhos, de seus medos, de sua experiência
social, de suas esperanças, de suas práticas.
Quando
aprendemos a ler, o fazemos sobre a escrita de alguém que antes
aprendeu a ler e a escrever. Ao aprender a ler, nos preparamos para
imediatamente escrever a fala que socialmente construímos.
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Nas culturas
letradas, sem ler e sem escrever, não se pode estudar, buscar conhecer,
apreender a substantividade do objeto, reconhecer criticamente a razão de ser do
objeto.
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Um dos
equívocos que cometemos está em dicotomizar ler de escrever,
desde o começo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos
na prática da leitura e da escrita, tomando esses processos como algo desligado
do processo geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanha
sempre, como estudantes e professores. "Tenho uma dificuldade enorme de fazer
minha dissertação. Não sei escrever", é a afirmação comum que se ouve
nos cursos de pós-graduação de que tenho participado. No fundo, isso
lamentavelmente revela o quanto nos achamos longe de uma compreensão crítica do
que é estudar e do que é ensinar.
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É preciso que
nosso corpo, que socialmente vai se tornando atuante, consciente, falante,
leitor e "escritor" se aproprie criticamente de sua forma de vir sendo que faz
parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se. Quer dizer, é
necessário que não apenas nos demos conta de como estamos sendo mas nos
assumamos plenamente com estes "seres programados, mas para aprender", de que
nos fala François Jacob (4). É necessário, então, que
aprendamos a aprender, vale dizer, que entre outras coisas, demos à linguagem
oral e escrita, a seu uso, a importância que lhe vem sendo cientificamente
reconhecida.
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Aos que
estudamos, aos que ensinamos e, por isso, estudamos também, se nos impõe, ao
lado da necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas de leitura,
a redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de bons
escritores, de bons romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos
que não temem trabalhar sua linguagem a procura da boniteza, da simplicidade e
da clareza (5).
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Se nossas
escolas, desde a mais tenra idade de seus alunos se entregassem ao trabalho de
estimular neles o gosto da leitura e o da escrita, gosto que continuasse a ser
estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade, haveria possivelmente um
número bastante menor de pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua
incapacidade de escrever.
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Se estudar,
para nós, não fosse quase sempre um fardo, se ler não fosse uma
obrigação amarga a cumprir, se, pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de
alegria e de prazer, de que resulta também o indispensável conhecimento com que
nos movemos melhor no mundo, teríamos índices melhor reveladores da qualidade de
nossa educação.
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Este é um
esforço que deve começar na pré-escola, intensificar-se no período da
alfabetização e continuar sem jamais parar.
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A leitura de
Piaget, de Vygotsky, de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, entre outros,
assim como a leitura de especialistas que tratam não propriamente da
alfabetização mas do processo de leitura como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da
Silva é de indiscutível importância.
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Pensando na
relação de intimidade entre pensar, ler e escrever e na necessidade que temos de
viver intensamente essa relação, sugeriria a quem pretenda rigorosamente
experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, se entregasse à tarefa de
escrever algo. Uma nota sobre uma leitura, um comentário em torno de um
acontecimento de que tomou conhecimento pela imprensa, pela televisão, não
importa. Uma carta para destinatário inexistente. É interessante datar os
pequenos textos e guardá-los e dois ou três meses depois submetê-los a uma
avaliação crítica.
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Ninguém
escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar.
Ao deixar
claro que o uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em relação com
o desenvolvimento das condições materiais da sociedade, estou sublimando que
minha posição não é idealista.
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Recusando
qualquer interpretação mecanicista da História, recuso igualmente a
idealista. A primeira reduz a consciência à pura cópia das estruturas
materiais da sociedade; a segunda submete tudo ao todo poderosismo da
consciência. Minha posição é outra. Entendo que estas relações entre consciência
e mundo são dialéticas (6).
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O que não é
correto, porém, é esperar que as transformações materiais se processem para que
depois comecemos a encarar corretamente o problema da leitura e da
escrita.
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A leitura
crítica dos textos e do mundo tem que ver com a sua mudança em processo.
Notas
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1 Sobre codificação, leitura do
mundo-leitura da palavra-senso comum-conhecimento exato, aprender, ensinar,
veja-se: Freire, Paulo: Educação como prática da liberdade — Educação e
mudança — Ação cultural para a liberdade — Pedagogia do oprimido — Pedagogia da
esperança, Paz e Terra; Freire & Sérgio Guimarães, Sobre
educação, Paz e Terra; Freire & Ira Schor, Medo e ousadia, o
cotidiano do educador, Paz e Terra; Freire & Donaldo Macedo,
Alfabetização, leitura do mundo e leitura da palavra, Paz e Terra;
Freire, Paulo, A importância do ato de ler, Cortez. Freire & Márcio
Campos; Leitura do mundo — Leitura da palavra, Courrier de
L'Unesco, fev. 1991.
2 Ver Freire, Paulo. Pedagogia
da esperança — um reencontro com a Pedagogia do oprimido, Paz e Terra,
1992.
3 Vygotsky and education.
Instructional implications and applications of sociohistorical psychology.
Luis C. Moll (ed.), Cambridge University Press, First paper back edition,
1992.
4 François Jacob, Nous sommes
programmés mais pour aprendre. Le Courrier de L'Unesco, Paris, fev.
1991.
5 Ver Freire, Paulo, Pedagogia
da esperança, Paz e Terra, 1992.
6 Id., ibid.
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Esta carta foi
retirada do livro Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar
(Editora Olho D'Água, 10ª ed., p. 27-38) no qual Paulo Freire dialoga sobre
questões da construção de uma escola democrática e popular. Escreve
especialmente aos professores, convocando-os ao engajamento nesta mesma luta.
Este livro foi escrito durante dois meses do ano de 1993, pouco tempo depois de
sua experiência na condução da Secretaria de Educação de São
Paulo.
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