Carta O
Berro.........................
................................repassem
Torturador conta pela 1ª vez rotina da casa em Petrópolis de onde, na ditadura, só um saiu vivo
Por Marcelo Remígio (marcelo.remigio@oglobo.com.br
RIO
- Depois de cinco horas de conversa, o velho oficial estava livre de um dos mais
bem guardados segredos do regime militar: o propósito e a rotina do aparelho
clandestino mantido nos anos 1970 pelo Centro de Informações do Exército (CIE)
em Petrópolis, conhecido na literatura dos anos de chumbo como "Casa da Morte",
onde podem ter sido executados pelo menos 22 presos políticos. Passados quase 40
anos, um dos agentes que atuaram na casa, o tenente-coronel reformado Paulo
Malhães, de 74 anos, o "Doutor Pablo" dos porões, quebrou o silêncio sobre o
assunto.
No jargão do regime, revelou Malhães, a casa era
chamada de centro de conveniência e servia para pressionar os presos a mudar de
lado e virar informantes infiltrados, ou RX, outra gíria dos agentes. O oficial
não usa a palavra tortura, mas deixa clara a crueldade dos métodos usados para
convencer os presos:
-
Para virar alguém, tinha que destruir convicções sobre comunismo. Em geral no
papo, quase todos os meus viraram. Claro que a gente dava sustos, e o susto era
sempre a morte. A casa de Petrópolis era para isso. Uma casa de conveniência,
como a gente chamava.
As
equipes do CIE, afirmou, trabalhavam individualmente, cada qual levando o seu
preso, com o objetivo de cooptá-lo. O oficial disse que a libertação de Inês
Etienne Romeu, a única presa sobrevivente da casa, foi um erro dos agentes, que
teriam sido enganados por ela, acreditando que aceitara a condição de
infiltrada.
Malhães
só não contou o que era feito com os que resistiram à pressão para trair. Diante
da pergunta, ficou em silêncio e, em seguida, lembrou que nada na casa de
Petrópolis era feito à revelia dos superiores. As equipes relatavam e esperavam
pela voz do comando:
-
Se era o fim da linha? Podia ser, mas não era ali que determinava.
Até
terça-feira, quando o militar abriu a porteira do sítio na Baixada Fluminense
aos repórteres, nenhum dos agentes da casa havia falado sobre ela. O que se
sabia era o testemunho de Inês Etienne, colhido em 1971 mas só divulgado em
1979, após o período em que cumpriu pena por envolvimento com a guerrilha da
VAR-Palmares. Outras referências ao local apareceram em entrevistas e livros de
colaboradores do regime, como o oficial médico Amilcar Lobo, o sargento Marival
Chaves (CIE-DF) e o delegado da Polícia capixaba Cláudio Guerra.
Sentado
ao lado da mulher no alpendre da casa maltratada pelo tempo, Malhães revelou que
já pertencia ao Movimento Anticomunista (MAC) quando ingressou nos quadros da
repressão. Sua ascensão, iniciada com um curso de técnicas para abrir cadeados,
fazer escuta, aprender a seguir pessoas, foi rápida. Após o golpe militar,
passou pela 2 Seção (Informações) e pelo Destacamento de Operações de
Informações (DOI) do I Exército (RJ) antes de ingressar no Centro de Informações
do Exército (CIE), onde passou a perseguir as organizações da luta armada pelo
país.
'Eu
organizei o lugar'
A
casa de Petrópolis, na Rua Arthur Barbosa 668, Centro, teria sido um trabalho
específico de Malhães já dentro do CIE. Ele afirmou que o imóvel, emprestado à
repressão pelo então proprietário, Mario Lodders, não era o único aparelho com
esse propósito:
-
Tinha outras. Eu organizei o lugar. Quem eram as sentinelas, a rotina e quando
se dava festa para disfarçar, por exemplo. Tinha que dar vida a essa casa. Eu
era um fazendeiro que vinha para Petrópolis de vez em quando - contou Malhães,
que se recusou a revelar o nome das sentinelas e não se deixou fotografar.
Cada
oficial, informou, contava com sua própria equipe, que podia incluir cabos,
sargentos, policiais federais, delegados ou médicos. De acordo com o coronel, na
maioria das vezes, as equipes trabalhavam com um preso de cada vez na casa. Esse
seria o motivo alegado por ele para desconhecer o destino de presos citados na
lista dos desaparecidos políticos.
-
Eu trabalhei uns cinco ou seis. Às vezes, passava de um mês com um -
explicou.
O
oficial disse que as táticas para cooptar e formar os infiltrados variavam, e
cada um deles era detalhadamente estudado antes da abordagem, tanto sua
ideologia como a família. Malhães disse que chegou a ficar preso por 30 dias
numa cadeia, disfarçado, em tentativa de arregimentar um RX. Depois que os
presos mudavam de posição, eles eram filmados delatando os companheiros. No
depoimento sobre os cem dias que passou na casa, Inês Etienne relatou que fingiu
ser uma infiltrada e foi filmada contando dinheiro e assinando um contrato com
seus algozes.
Sobre
o destino de alguns nomes de presos, que arquivos ou testemunhas apontam que
estiveram na Casa da Morte, ele disse que o ex-deputado federal Rubens Paiva não
passou por lá, mas admitiu ter visto Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto,
comandante da VAR-Palmares desaparecido em fevereiro de 1971.
-
O Beto talvez tenha conhecido - informou.
Questionado
novamente se os militantes da luta armada eram assassinados, ele
respondeu:
-
Se ele deu depoimento, mas a estrutura (da organização guerrilheira) não caiu,
ele pode ter sofrido as consequências.
O
coronel reformado disse que, além da garantia de sigilo, era oferecida ajuda
financeira aos infiltrados, embora nem todos aceitassem. Uma reunião do PCdoB em
São Paulo, afirmou, teria custado R$ 50 mil. Sem fornecer qualquer prova além
das declarações, disse que nem todos os desaparecidos teriam morrido no
período.
-
Na lista de desaparecidos tem RX. E muita gente morreu em combate. Desaparecido
é um termo forçado. Em combate, tudo pode acontecer. E você não vai achar
desaparecido nunca - declarou ele, ao negar as formas conhecidas até aqui para
desaparecimento dos corpos.
Para
o ex-preso político Ivan Seixas, diretor do Núcleo de Preservação da Memória
Política, Malhães é fundamental para esclarecer o destino dos
desaparecidos:
-
Ele foi um dos três coordenadores operacionais da repressão, ao lado de Freddie
Perdigão Pereira e de Ênio Pimentel Silveira, que já estão mortos.
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