Carta O
Berro......................... .............................. ..repassem
AS HERANÇAS MALDITAS DA
DITADURA
por Emir
Sader
Um regime brutal como a ditadura militar, que tratou de erradicar da
sociedade e do Estado brasileiros tudo o que lhe parecesse vinculado à
democracia, que se constituiu em
uma ditadura de classe contra os trabalhadores e suas organizações, que tratou
de ser um subimperiaismo, aliado privilegiado dos EUA na região – nao poderia
desaparecer sem deixar vestígios. Ainda mais que a ditadura militar brasileira
nao foi derrotada, como aconteceu nos países vizinhos.
Na Argentina essa derrota se deu na
tentativa desesperada dos militares de
conquistar legitimidade com a aventura das guerra das Malvinas,
encarnando uma justa reivindicação do povo argentino com uma bravata que
terminou com uma vergonhosa derrota e retirada covarde da mesma alta
oficialidade que havia mostrado sua “coragem” na repressão selvagem aos
militantes da resistência popular. Sua derrota teve o efeito oposto, o de
acelerar sua derrota e o fim do regime, que também por isso tem seus
principais gendarmes presos,
julgados e condenados.
No Uruguai e no Chile essas derrotas
assumiram formas similares com referendos convocados pelas ditaduras militares
para tentar perpetuar-se, em que foram derrotadas e tiveram que abrir caminho à
transição para a democracia. Ali também se conseguiu reverter as anistias
decretadas pelos militares e promover formas de investigação da verdade e da
justiça correspondente.
No Brasil nao houve algo
similar. A ditadura conduziu o
processo de transição à democracia, definindo suas formas e seus prazos.
Conseguiu evitar as eleições diretas para presidente, impediu assim que uma
eleição popular pudesse consagrar uma presidencia como a de Ulysses Guimaraes,
que representava de maneira mais cabal o impulso democrático acumulado pelas
lutas de resistência à ditadura, para impor mais moderado Tancredo Neves e, pelas
contingencias da historia, terminando por ter o presidente do partido da
ditadura e principal articulador contra as diretas, Jose Sarney, como o primeiro
presidente civil desde o golpe militar.
Bastaria isso para explicar como o
novo regime foi um hibrido do novo e do velho, nasceu de mais um pacto de elites
na historia brasileira, forjado em torno do Colégio Eleitoral e do pacto entre o
PMDB e um partido nascido das costelas do regime militar, o então PFL. O
anti-malufismo substituiu o anti-ditadura e quem se alinhava naquele bloco
recebia o selo de “democrata”, entre eles ACM, Marco Maciel, Jorge
Bornhausen. Foi um caso típico do
“transformismo”, caracterizado por
Gramsci, em que se muda a forma de dominação para preservar seu
conteúdo.
A primeira das heranças desse parto
conciliador do novo regime foi seu caráter profundamente liberal, no sentido de
que a reinstauracao da democracia se limitou às instancias politicas, jurídicas
e institucionais. Nao se promoveu a
democratização econômica e social da sociedade brasileira – que, de
alguma forma, estava contida no programa democrático do PMDB, que nao orientou o
governo Sarney. A concentração ainda maior do poder da terra, dos bancos, das
grandes corporações industriais e comerciais, dos meios de comunicação, das
estruturas privadas nos campos da educação, da saúde, nao foram tocadas e
sobreviveram como uma das mais duras heranças da ditadura para a democracia
brasileira.
A ausência das derrotas politicas que
caracterizaram os países vizinhos fez com que a anistia auto-decretada pela
ditadura militar sobrevivesse até hoje, bloqueando a busca da verdade e
impedindo que mesmo crimes inafiançáveis como a tortura ficassem impunes no
Brasil. Paralelamente, os militares mantem poder de pressão sobre este e outros
temas, de forma totalmente indevida numa democracia, ainda mais pelos graves
danos que a alta oficialidade das FFAA produziu no
país.
Outra das heranças negativas foi o
modelo econômico imposto pela ditadura a ferro e fogo, que teve alguns dos seus
aspectos essenciais preservados no pos-ditadura. Janao foi possível manter o
arrocho salarial e a intervenção militar em todos os sindicatos – que fez a
festa do grande empresariado e foi um dos “santos” do chamado “milagre
econômico”. Mas o modelo econômico voltado para a exportação e para o consumo
das altas esferas do consumo se manteve, sem que se desenvolvessem amplas
politicas de distribuição de renda e de ampliacao do mercado interno de consumo
popular – que so viriam a ocorrer a partir do governo Lula. A marca de pais mais desigual do mundo,
que se havia aprofundado na
ditadura e se mantido no novo regime, acompanhou a democracia brasileira como a sua grande lacra.
Uma outra herança maldita da ditadura
foi a deterioração dos serviços públicos. Ao arrochar os salários dos servidores
públicos e diminuir os gastos sociais, a ditadura promoveu uma degradação da
escola publica e da saúde publica no Brasil. Até aquele momento esses eram
espaços que agrupavam os setores populares e a classe media, numa aliança e
convivência que eram parte integrante da democracia e da construção da esfera
publica. Com sua deterioração, a classe media se bandeou maciçamente para a
escola privada e os serviços privados de saúde, a ponto de passar a fazer parte
“natural” dos seus orçamentos familiares esses gastos enormes. Enquanto isso a
escola e a saúde publica passaram a ser coisa de pobre, foram se degradando,
assim como as condições de trabalho e de salários dos trabalhadores da educação
e da saúde.
Os meios de comunicação foram outra
elemento da herança maldita deixada pela ditadura. O elemento central dessa
herança foi a constituição da Globo como o principal grupo monopólico dos meios
de comunicação no Brasil, com todos os privilégios que a ditadura lhe permitiu,
fazendo da TV Globo praticamente o órgão oficial da ditadura. Por outro lado,
impediu que outros grupos das elites dominantes - como a Abril e o JB, entre
outros – pudessem disputar hegemonia
com a Globo, favorecendo seu monopólio inquestionado como setor dominante
da mídia privada. As outras empresas, que haviam, todas, apoiado a golpe
militar, dado cobertura à selvagem repressão da ditadura, e se valido da
liquidação dos órgãos que nao haviam tido essa postura – como a Ultima Hora e,
de certa forma, o Correio da Manhá
-, puderam aparecer como entidades identificadas com a democracia liberal
durante o período de transição e bloquear o surgimento de imprensa
alternativa.
Sem esgotar os elementos dessa
herança, haveria que mencionar ainda a tentativa de descaracterização do
asepecto ditatorial do regime militar, presente na “teoria do autoritarismo”,
formulada por FHC, segundo a qual nao teríamos tido uma ditadura – menos ainda
militar, cujo aspecto ele sempre desconheceu nas suas analises - , mas
simplesmente um “regime
autoritário”. A democratização, pelas propostas de FHC se limitaria a
desconcentrar o poder politico em torno do executivo e desconcentrar o poder
econômico em torno do Estado – aparecendo como um formulador precoce as teses
neoliberais no Brasil. A teoria do
autoritarismo foi a ideologia da transição conservadora no Brasil, lhe deu
respaldo teórico e favoreceu a sobrevivência das heranças malditas que a
ditadura deixou para a democracia brasileira.
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