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martes, 3 de abril de 2012

Tinkunaco 0393/12 - Re: [Carta O BERRO] AS HERANÇAS MALDITAS DA DITADURA por Emir Sader

Carta O Berro.........................................................repassem



AS  HERANÇAS MALDITAS DA DITADURA

por Emir Sader

         Um regime brutal como a ditadura militar, que tratou de erradicar da sociedade e do Estado brasileiros tudo o que lhe parecesse vinculado à democracia,  que se constituiu em uma ditadura de classe contra os trabalhadores e suas organizações, que tratou de ser um subimperiaismo, aliado privilegiado dos EUA na região – nao poderia desaparecer sem deixar vestígios. Ainda mais que a ditadura militar brasileira nao foi derrotada, como aconteceu nos países vizinhos.
Na Argentina essa derrota se deu na tentativa desesperada dos militares de  conquistar legitimidade com a aventura das guerra das Malvinas, encarnando uma justa reivindicação do povo argentino com uma bravata que terminou com uma vergonhosa derrota e retirada covarde da mesma alta oficialidade que havia mostrado sua “coragem” na repressão selvagem aos militantes da resistência popular. Sua derrota teve o efeito oposto, o de acelerar sua derrota e o fim do regime, que também por isso tem seus principais  gendarmes presos, julgados e condenados.
No Uruguai e no Chile essas derrotas assumiram formas similares com referendos convocados pelas ditaduras militares para tentar perpetuar-se, em que foram derrotadas e tiveram que abrir caminho à transição para a democracia. Ali também se conseguiu reverter as anistias decretadas pelos militares e promover formas de investigação da verdade e da justiça correspondente.
No Brasil nao houve algo similar.  A ditadura conduziu o processo de transição à democracia, definindo suas formas e seus prazos. Conseguiu evitar as eleições diretas para presidente, impediu assim que uma eleição popular pudesse consagrar uma presidencia como a de Ulysses Guimaraes, que representava de maneira mais cabal o impulso democrático acumulado pelas lutas de resistência à ditadura, para impor  mais moderado Tancredo Neves e, pelas contingencias da historia, terminando por ter o presidente do partido da ditadura e principal articulador contra as diretas, Jose Sarney, como o primeiro presidente civil desde o golpe militar.
Bastaria isso para explicar como o novo regime foi um hibrido do novo e do velho, nasceu de mais um pacto de elites na historia brasileira, forjado em torno do Colégio Eleitoral e do pacto entre o PMDB e um partido nascido das costelas do regime militar, o então PFL. O anti-malufismo substituiu o anti-ditadura e quem se alinhava naquele bloco recebia o selo de “democrata”, entre eles ACM, Marco Maciel, Jorge Bornhausen.  Foi um caso típico do “transformismo”, caracterizado  por Gramsci, em que se muda a forma de dominação para preservar seu conteúdo.
A primeira das heranças desse parto conciliador do novo regime foi seu caráter profundamente liberal, no sentido de que a reinstauracao da democracia se limitou às instancias politicas, jurídicas e institucionais. Nao se promoveu a  democratização econômica e social da sociedade brasileira – que, de alguma forma, estava contida no programa democrático do PMDB, que nao orientou o governo Sarney. A concentração ainda maior do poder da terra, dos bancos, das grandes corporações industriais e comerciais, dos meios de comunicação, das estruturas privadas nos campos da educação, da saúde, nao foram tocadas e sobreviveram como uma das mais duras heranças da ditadura para a democracia brasileira.
A ausência das derrotas politicas que caracterizaram os países vizinhos fez com que a anistia auto-decretada pela ditadura militar sobrevivesse até hoje, bloqueando a busca da verdade e impedindo que mesmo crimes inafiançáveis como a tortura ficassem impunes no Brasil. Paralelamente, os militares mantem poder de pressão sobre este e outros temas, de forma totalmente indevida numa democracia, ainda mais pelos graves danos que a alta oficialidade das FFAA produziu no país.
Outra das heranças negativas foi o modelo econômico imposto pela ditadura a ferro e fogo, que teve alguns dos seus aspectos essenciais preservados no pos-ditadura. Janao foi possível manter o arrocho salarial e a intervenção militar em todos os sindicatos – que fez a festa do grande empresariado e foi um dos “santos” do chamado “milagre econômico”. Mas o modelo econômico voltado para a exportação e para o consumo das altas esferas do consumo se manteve, sem que se desenvolvessem amplas politicas de distribuição de renda e de ampliacao do mercado interno de consumo popular – que so viriam a ocorrer a partir do governo Lula.  A marca de pais mais desigual do mundo, que se havia  aprofundado na ditadura e se mantido no novo regime, acompanhou a democracia  brasileira como a sua grande lacra.
Uma outra herança maldita da ditadura foi a deterioração dos serviços públicos. Ao arrochar os salários dos servidores públicos e diminuir os gastos sociais, a ditadura promoveu uma degradação da escola publica e da saúde publica no Brasil. Até aquele momento esses eram espaços que agrupavam os setores populares e a classe media, numa aliança e convivência que eram parte integrante da democracia e da construção da esfera publica. Com sua deterioração, a classe media se bandeou maciçamente para a escola privada e os serviços privados de saúde, a ponto de passar a fazer parte “natural” dos seus orçamentos familiares esses gastos enormes. Enquanto isso a escola e a saúde publica passaram a ser coisa de pobre, foram se degradando, assim como as condições de trabalho e de salários dos trabalhadores da educação e da saúde.
Os meios de comunicação foram outra elemento da herança maldita deixada pela ditadura. O elemento central dessa herança foi a constituição da Globo como o principal grupo monopólico dos meios de comunicação no Brasil, com todos os privilégios que a ditadura lhe permitiu, fazendo da TV Globo praticamente o órgão oficial da ditadura. Por outro lado, impediu que outros grupos das elites dominantes - como a Abril e o JB, entre outros – pudessem disputar hegemonia  com a Globo, favorecendo seu monopólio inquestionado como setor dominante da mídia privada. As outras empresas, que haviam, todas, apoiado a golpe militar, dado cobertura à selvagem repressão da ditadura, e se valido da liquidação dos órgãos que nao haviam tido essa postura – como a Ultima Hora e, de certa forma, o Correio da Manhá  -, puderam aparecer como entidades identificadas com a democracia liberal durante o período de transição e bloquear o surgimento de imprensa alternativa.
Sem esgotar os elementos dessa herança, haveria que mencionar ainda a tentativa de descaracterização do asepecto ditatorial do regime militar, presente na “teoria do autoritarismo”, formulada por FHC, segundo a qual nao teríamos tido uma ditadura – menos ainda militar, cujo aspecto ele sempre desconheceu nas suas analises - , mas simplesmente um  “regime autoritário”. A democratização, pelas propostas de FHC se limitaria a desconcentrar o poder politico em torno do executivo e desconcentrar o poder econômico em torno do Estado – aparecendo como um formulador precoce as teses neoliberais no Brasil.  A teoria do autoritarismo foi a ideologia da transição conservadora no Brasil, lhe deu respaldo teórico e favoreceu a sobrevivência das heranças malditas que a ditadura deixou para a democracia brasileira.


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