Apesar do terrorismo, das Globos e Vejas locais e das pesquisas fajutas, gregos rejeitam acordo com a troika por ampla maioria
publicado em 05 de julho de 2015 às 16:03
por Luiz Carlos Azenha
Houve
terrorismo por parte das autoridades europeias encarregadas de impor a
austeridade, sob o olhar severo da chanceler Angela Merkel, que comandou
a vilificação dos gregos como perdulários e preguiçosos —
“mediterrâneos” está para a direita europeia como “nordestinos” está
para a brasileira.
Provavelmente
houve manipulação de pesquisas com o objetivo de modificar o resultado,
da mesma forma que houve no referendo revogatório de Hugo Chávez em
2004 — uma delas, produzida por uma empresa de Washington, previa
derrota chavista por 60% a 40%, mas deu o inverso.
Ainda assim, os eleitores gregos votaram OXI de forma maciça: 60% a 40%.
Saul Leblon, na Carta Maior, produziu uma importante reflexão antes mesmo de saber o resultado.
Porém,
acrescentamos que existe uma diferença essencial entre o Syriza e o
partido que no papel deveria conduzir a resistência ao neoliberalismo no
Brasil, o PT. Este último tornou-se co-gestor da austeridade e,
portanto, corre o mesmo risco enfrentando pelos antigos partidos gregos
de esquerda e pelo PSOE espanhol: sumir do mapa.
*****
Foto publicada pela revista Veja sobre o plebiscito grego, compartilhada no Facebook pelo Fernando Morais
05/07/2015 00:00 – Copyleft
O golpe em marcha: mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas
O golpe em marcha: mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas
Seja
qual for o desfecho do plebiscito deste domingo, é o método o que mais
importa à encruzilhada do Brasil nos dias que correm.
Levar a lógica dos mercados financeiros a um plebiscito é algo de que nunca se tinha ouvido falar antes.
Mas foi justamente isso o que ocorreu na Grécia neste domingo.
Independente
do resultado das urnas — a essa altura já sabido — é forçoso
reconhecer: um anel poderoso da blindagem neoliberal foi rompido na cena
política.
E isso não é um detalhe: é um método.
O que ele ensina é que a única opção à tirania financeira é submeter o mercado ao escrutínio da democracia.
Na
crise de 2008, a brava Islândia já havia decidido o destino de seus
bancos — um buraco especulativo dez vezes superior ao PIB do país — a um
plebiscito.
Entre sacrificar a nação ou a banca, a decisão foi salvar a nação e deixar o rentismo falir.
A
abrangência e o impacto daquela consulta, porém, foi menor. A pequena
nação de 320 mil habitantes — que se recuperou de maneira formidável e
hoje desfruta de pleno emprego — sequer pertencia ao euro.
Foi tratada como um pitoresco ponto fora da curva pelo colunismo de mercado.
O que a Grécia fez agora é de superior importância e vai muito além do pitoresco.
Ela
resgatou o princípio segundo o qual política é economia concentrada na
expressão mais direta dos conflitos de classe de uma sociedade.
Seu
inestimável exemplo foi justamente dar transparência àquilo que as
ideias dominantes de nossa época lograram mascarar. Ou seja, a farsa que
empresta aos interesses plutocráticos da finança a condição de uma
ciência acima dos conflitos sociais e econômicos.
Reforçar
a blindagem a-histórica do capitalismo, de modo a cegar os olhos para a
relação de poder que lhe é intrínseca, foi uma das maiores vitórias do
neoliberalismo em nosso tempo.
Para
consumar esse abastardamento, ademais de se atribuir à economia uma
autossuficiência regulatória que ela não tem, o neoliberalismo cuidou de
aprofundar a interferência do dinheiro no sentido inverso.
O
esforço obstinado de Eduardo Cunha para legitimar a presença do
dinheiro empresarial nas campanhas eleitorais é um emblema dessa
inversão dos papéis, com o sotaque golpista que marca a urgência
brasileira nesse momento.
Que
isso tenha acontecido em meio a investigações de corrupção cuja origem
reside justamente no intercurso entre empresas e partidos não é apenas
um escárnio.
É
a força do sistema corruptor do dinheiro impondo a sua supremacia na
vida do país de forma explícita, quase obscena, nesse momento.
A dissonância aberta pela Grécia não é pequena.
Sobretudo,
porém, não deve ser avaliada pelas forças progressistas brasileiras
apenas com base no resultado efêmero do plebiscito deste domingo.
Seja qual for o seu desfecho, é o método o que mais importa à encruzilhada do país nos dias que correm.
Ou
não foi justamente a equivocada decisão de endossar a ‘objetividade’
dos mercados na definição dos ajustes que deveriam ter sido repactuados
politicamente, que levou ao afunilamento golpista atual?
A
opção pela estratégia publicitária nas eleições de 2014 (criticada
então neste espaço, e que quase levou à derrota da candidatura Dilma)
subestimou a capacidade de luta e discernimento do protagonista social
que que poderia fazê-lo.
Negligenciou-se
a força e a centralidade política da tomada de consciência histórica de
60 milhões de brasileiros que saíram da miséria e da pobreza e
ascenderam na pirâmide da renda no ciclo de 12 anos de governos
progressistas.
Ao invés de ser corrigido, o equívoco eleitoral se aprofundou uma vez instalada o novo mandato.
A
um centurião dos mercados foi dada carta branca para proceder a ajustes
cuja pertinência e ponderação só teriam viabilidade se negociados com
as forças sociais do país.
A frente de esquerda Syriza não cometeu esse erro; pode pagar caro por sua ousadia, é verdade.
Mas não tão caro a ponto de ver esfarelar a confiança de suas bases em sua coerência.
Não
tão caro a ponto de, eventualmente derrotada no referendo, perder o
vigor representativo para uma volta ao poder até com maior força, quem
sabe.
É
a emergência ameaçadora dessa força — não os bilhões de euros em
questão no calote grego — que explica a determinação da troika (FMI, BCE
e Comissão do Euro) de não permitir a consumação de um acordo favorável
ao governo do primeiro ministro Alexis Tsipras.
A sequência política antecedente ao plebiscito ilumina essa hierarquia com clareza.
Vejamos:
1.
Em 21 de junho, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker,
e o primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, chegaram a um esboço de
acordo que gerou euforia nos mercados;
2.
Em 23 de junho, tudo havia ruído. O que se passou nessas 48 horas é a
pergunta que analistas isentos se fazem em diferentes veículos;
3.
A maioria atribui ao FMI, aos falcões germânicos e a governos
reacionários do euro que vergastaram seus povos, Espanha e Portugal, por
exemplo, o veto ao acordo favorável à Grécia. Não por divergências
intransponíveis em relação a valores. Não. Acima de tudo porque uma
vitória do Syriza abriria o precedente encorajador a novos hereges em
marcha. Caso do Podemos espanhol, por exemplo;
4. O argumento é corroborado matematicamente:
—
cálculos do Royal Bank of Scotland, divulgados pelo jornal Valor,
estimam que a soma total das dívidas pendentes no imbróglio grego é de
537 bilhões de euros;
— se o país saísse do euro, as perdas para os credores seriam de 234 bi de euros (2,4% do PIB do euro);
—
todavia, se lograsse uma reestruturação, como reivindica o Syriza,
trazendo a dívida de 200% do PIB para 100% dele, com o perdão do
restante, a perda seria de apenas 1,4% do PIB da zona do euro;
5.
Estudos do próprio FMI divulgados na 6ª feira admitem que a dívida da
Grécia é impagável, qualquer que seja o grau de sacrifício que venha a
ser imposto a sua população;
6.
De acordo com o estudo, vazado sem a assinatura da direção do FMI, a
dívida grega deveria ser abatida em 30%, ademais de se assegurar uma
carência de 20 anos para iniciar o pagamento restante. Qualquer ‘ajuste’
sem esse requisito é insustentável.
Tudo isso é muito, muito próximo do que argumenta e reivindica o governo Syriza.
Mas nunca lhe foi oferecido na mesa de negociações.
Por quê?
Justamente porque a vitória da democracia grega implodiria uma das mais eficazes operações ideológicas das últimas décadas.
Essa que apresenta a economia como um enclave autônomo, esfericamente subordinado às leis naturais dos livres mercados.
A
serviço dessa mesma assepsia histórica vicejam no Brasil as editorias
de economia e o colunismo dos vulgarizadores do capital metafísico, esse
que em textos abestalhados de tanta toxina neoliberal, apresenta os
desequilíbrios estruturais do desenvolvimento como mera inépcia do
lulopopulismo.
Essa
lixeira histórica e ética prendeu a respiração diante da odisseia do
país que mais longe levou a politização da disjuntiva em torno da qual
se debate a luta pelo desenvolvimento em nosso tempo: a economia deve
trabalhar pela sociedade ou contra ela para servir a banqueiros e
rentistas?
A
transformação da pergunta em uma disputa política aberta e explícita é
uma vitória da Grécia e uma derrota antecipada da ideologia mercadista
urbi et orbi.
Não
por acaso, uma gigantesca operação de asfixia foi acionada para impedir
que esse levante se consumasse no plebiscito deste domingo.
A
sociedade que já perdeu 1/5 de quase tudo, empregos, salários,
aposentadorias, leitos hospitalares etc foi explicitamente ameaçada de
confinamento financeiro e político, se insistisse em reinventar seu
contrato social no escrutínio proposto pelo primeiro ministro, Alexis
Tsipras.
A
48 horas do referendo, na sexta-feira, o sindicato dos banqueiros da
Grécia lançou um comunicado coercitivo para dizer que o sistema dispunha
de apenas um bi de euros em caixa — insuficiente para prover a liquidez
do mercado no day after do escrutínio, quando o país ficaria órfão se
votasse ‘não’ ao arrocho.
Grandes
empresas e redes de serviços – postos de gasolina, por exemplo —
anteciparam-se para vender exclusivamente cash a uma população sem
caixa, confrontando-a assim com a prefiguração do colapso acenado.
Na
antevéspera do plebiscito, as principais redes de televisão, as Globos
de lá, dedicaram 46 minutos à cobertura dos comícios favoráveis ao
arrocho e apenas oito minutos às concentrações pelo ‘não’.
Autoridades
da União Européia, governantes conservadores, bancos e consultorias –
compulsivamente ecoados pelo dispositivo midiático local — fecharam o
cerco com ameaças, coações e chantagens.
Consumou-se
assim uma operação de propaganda de guerra de virulência equivalente ao
cerco do exército branco contra a Rússia revolucionária, em 1917.
‘O
que estão fazendo com a Grécia tem um nome: terrorismo”, disse o
ministro Yannus Varoufakis, autor também da frase síntese da polaridade
entre a coerência e a coerção: ‘Prefiro cortar um braço a assinar um
acordo que não contemple a reestruturação da dívida da Grécia’.
Independente
do veredito do domingo, portanto, a heresia já terá desempenhado a
missão pedagógica de produzir um clarão capaz de iluminar o imaginário
social para muito além das fronteiras gregas.
Para
que servem as urnas afinal, se um governo, e o projeto por elas
escolhidos, é literalmente destruído no momento seguinte ‘pelas
imposições dos mercados’ assim afrontados?
Ou
para ser mais explícito diante da urgência do Brasil nos dias que
correm: para que servem se, uma vez eleito, o governante é coagido pelo
cerco do dinheiro a fazer concessões que corroem os vínculos de
confiança com sua principal base de apoio, tornando-se ainda mais
vulnerável às imposições dos mercados e dos interesses determinados a
derrubá-lo?
A
força e a tragédia do povo grego reside em particularizar a heresia em
relação à encruzilha diante da qual muitos hesitam na vã esperança de
obter a indulgência dos mercados.
Um
dos principais jornais brasileiros, a Folha, dedica seu caderno de
Política, na edição deste domingo, a avaliar as possibilidades,
preferências e métodos mais adequados à derrubada do governo da
Presidenta Dilma Rousseff, eleita com 54 milhões de votos há apenas e
longínquos oito meses.
A
principal batalha do nosso tempo, portanto, aqui ou na Grécia, fique
claro, não se trava em torno de cifras ou adequações macroeconômicas em
si. Mas, sim, em se preservar ou não o poder de dominação dos detentores
das cifras.
O
câmbio defasado no caso brasileiro — um exemplo de problema real que
sucateou parte da indústria — não é tão grave para a plutocracia local e
global quanto a consolidação de um poder progressista no comando do
Estado.
Derruba-lo
é uma prioridade que antecede e independe da genuflexão macroeconômica –
ou as concessões suicidas em curso já teriam erradicado o furor
golpista.
Não é propriamente uma trégua que se assiste no Brasil nesse momento.
A resposta, portanto, é de outra natureza.
Trata-se
de trazer a economia para a política e de levar a política para a
economia. Ou seja, repactuar o desenvolvimento com uma nova correlação
de forças.
É essa fusão que pode devolver à democracia um poder ordenador que a sociedade cedeu ao mercado.
Não se negue à economia leis próprias, circunstâncias limitadoras e incertezas a exigir gestão, equilíbrio e bom senso.
Mas
sancionar a não ingerência da política nas decisões do desenvolvimento é
tão somente uma operação suicida de entorpecimento social para
preservar e engordar interesses sabidos.
Nas
crises cíclicas do sistema, quando se descarrega sobre a sociedade um
fardo de sacrifícios dificilmente vendável como ciência ou fatalidade, o
labor dessa catequese é afrontado pela natureza crua das coisas.
Democracia e capitalismo deparam-se então em pé de igualdade com a disputa pelo destino da nação e do seu desenvolvimento.
Atenas se transformou na capital dessa transgressão nos últimos meses.
O
nó górdio que impede o Brasil de extrair as devidas lições dessa
experiência é a rala contrapartida de organização coletiva para levar a
cabo a luta por uma outra agenda de desenvolvimento.
Não há espaço para mágicas na história.
O
país não sairá do atoleiro se o sujeito do processo, aquele do qual
depende o respaldo para enfrentar a coerção mercadista, permanecer
alheio aos conflitos que determinarão o seu destino.
O salto em direção a isso hoje no Brasil chama-se frente progressista e democrática.
E
a pergunta que ela enseja às organizações populares é curta e
grossa: “o que mais precisa acontecer aqui para que as lideranças
sociais anunciem um comitê unificado contra o golpe e uma agenda
política de repactuação do desenvolvimento?”
Mirem-se no exemplo das lideranças de Atenas.
Enquanto há tempo.
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