E o Estado de exceção avança…
Os debates emocionados sobre a crise política têm ofuscado as mentes e, claro, também sou vítima disso.
Mas um
aspecto pelo menos me parece claro: estamos verificando um avanço muito
perigoso do Estado de exceção e o, pior, sob o aplauso dos “dois lados”
que tomaram de assalto a vida social para fazer parecer que tudo no
mundo gira ao seu redor.
A questão é
que esses lados, por uma questão que já se tornou pessoal, entraram em
uma espécie de jogo do vale tudo, pretendendo, inclusive, que todos
participem dele, para que no clima da balburdia total não se consiga
mais chegar a um raciocínio minimante voltado a uma crítica radical da
realidade, que ponha em questão o modo de vida, o modo de produção, a
forma de distribuição da riqueza produzida etc.
Vivemos o paradoxo do aprofundamento da superficialidade para a satisfação de interesses pessoais não revelados.
O maior problema disso é a perda do senso crítico, que deve ser também autocrítico.
Concretamente
pode se exemplificar a situação com o que se passou com o julgamento do
STF que determinou a “suspensão” do mandato de Eduardo Cunha.
Na histeria
coletiva produzida pelo já apelidado “Fla-Flu” político, a decisão foi
aplaudida por todos os lados. Mas o efeito disso é corroborar o Estado
de exceção.
Lembre-se
que para a realização da Copa instaurou-se, na Lei Geral da Copa (e
também das Olimpíadas), um autêntico Estado de exceção, mas a população
em geral, a grande mídia e boa parte da intelectualidade aplaudiram a
medida ou se silenciaram a respeito, já que a muitos interessava a
realização dos jogos, seja pela expectativa econômica (que se mostrou
frustrada), seja pela ilusão da felicidade ou até por um certo
patriotismo…
A atuação
repressiva do Estado para abafar as manifestações populares, ou seja,
para sufocar a democracia real, já havia sido, inclusive, fruto de um
grande ajuste político por ocasião das manifestações de junho de 2013.
Fato é que
essa “euforia” pela Copa favoreceu ao abalo do pacto social estabelecido
na constituinte de 1987, que consagrou o Estado Social Democrático de
Direito, e com isso avançaram as formas de exploração do trabalho e a
supressão de direitos sociais, civis e políticos, com reforço das formas
repressivas do Estado.
Mas muitos
dos que aplaudiram o Estado de sítio então estabelecido, dizendo que a
repressão se fazia necessária para conter a ação de “antipatriotas” que
queriam manchar a imagem do país com as manifestações contra a Copa,
viram-se depois vítimas do próprio veneno quando a fragilidade
institucional permitiu que uma firula jurídica fosse apresentada como
fundamento para a retirada de uma Presidenta da República
democraticamente eleita.
Instaurou-se,
então, como estamos vendo, uma contenda argumentativa, pautada por
interesses pessoais partidária e associativamente comprometidos, cuja
solução não guarda nenhum padrão de racionalidade lógica, tanto que Deus
precisou ser invocado para fundamentar muitos votos.
O problema é
que nesse quadro assumido da ausência de regras não há limites, ainda
mais quando se tenta encontrar um ponto de equilíbrio no contexto do
caos.
É que se
verificou no julgamento de Eduardo Cunha, que não foi outra coisa senão
uma forma de levar adiante o conjunto de irracionalidades já instaurado.
Ora, se o
Presidente da Câmara estava interferindo indevidamente na atuação da
Câmara a tal ponto da própria Câmara não ter mecanismos para evitar
isso, seria o caso de reescrever as regras da atuação institucional do
Legislativo, declarando a sua falência.
Sem
enfrentar a questão intrincada da artificial separação de poderes,
parece-me que afastar, por decisão judicial, o Presidente da Câmara, em
situação não abarcada por previsão legal, constitui, no mínimo, uma
intervenção impertinente do Judiciário sobre o Legislativo.
Mas
admitamos que a intervenção se justifique para a garantia da democracia.
Então, a decisão só teria algum sentido se fosse tomada no primeiro
momento em que essa atuação antidemocrática do Presidente da Câmara foi
detectada. O afastamento determinado sete meses após uma atuação
intensa, da qual resultaram, inclusive, a instauração e a abertura do
processo de impeachment da Presidenta da República não tem nenhum valor
para a garantia da democracia, podendo ser visto, simplesmente, como um
ato político votado à satisfação da vontade popular e também para não
deixar Eduardo Cunha, “persona no grata”, na linha sucessória do suposto
novo Presidente da República.
Disse o
Ministro Lewandowisk, com boa dose de razão, que o tempo do processo não
é o mesmo da política, mas o que se sabe é que o afastamento não foi
determinado antes para que não parecesse uma interferência do Supremo
sobre a atuação da Câmara no processo de impeachment. Então, a política
determinou, sim, o tempo da atuação jurisdicional e de uma forma mais
indevida pois se havia a consciência em torno da ameaça à democracia que
a presença do Presidente da Câmara representava não era possível deixou
nesta posição exatamente no momento em que se colocaria em maior prova o
estágio de nossa democracia. Mal comparando seria como deixar um
pedófilo cuidar de crianças até que se encontrassem as condições
políticas ideais para retirá-lo dessa condição.
E já se
adiantaram alguns Ministros do Supremo no sentido de que essa decisão
não produz efeito retroativo. Ou seja, para preservar a democracia
admitem como legítimo que ela tenha sido arranhada por um tempo
determinado.
Mas o pior
não é isso. O mais grave é que os tais “dois lados” estão aplaudindo a
decisão do Supremo, uma decisão que o próprio Supremo admite que foi uma
“medida excepcional”.
De fato, foi
uma decisão sem base constitucional e que, ademais, foi bem além do seu
objetivo. Ora, se o problema era a atuação do Deputado na Presidência
da Câmara, bastaria afastá-lo dessa condição e não retirá-lo da atuação
parlamentar, até porque, como Dilma, Cunha foi democraticamente eleito e
só pode perder o mandato pela vias adequadas, como, ademais, deveria
estar ocorrendo com Dilma (e não está).
Sei que a
decisão do Supremo não elimina o mandato, mas o suspende e ainda joga
sobre a Câmara o peso político de uma manifestação meritória sobre a
conduta do Deputado que tem, inclusive, o apoio praticamente unânime da
população.
Além disso,
de forma contraditória, “suspende” o Deputado e mantém os seus salários e
demais vantagens, sendo que nesse aspecto, ao menos, pode-se ver a
vantagem de se superar a compreensão jurídica trabalhista de que a
suspensão do contrato de trabalho impede o recebimento de salários…
Claro que
não faço uma defesa de Cunha, mas acho que aplaudir uma decisão do
Supremo que não tem base constitucional, que aniquila um mandato
parlamentar sob o fundamento de preservar a democracia, que a própria
decisão já admite que tenha sido arranhada pela atuação desse mesmo
parlamentar, parece-me uma atitude que apenas reforça o Estado de
exceção e que abre definitivamente a porta para que uma “caça às bruxas”
se instaure por atuação do Supremo e das demais esferas do Judiciário,
assim como das repartições públicas e privadas por aí… Ora, se fazem o
que estão fazendo com uma Presidenta, se fazem o que fizeram com um
Deputado Federal, o que não farão com os direitos civis, políticos e
sociais do dito “cidadão comum”? E dentro de uma lógica autoritária
instaurada (que ninguém se iluda), no conceito de “cidadão comum”
incluem-se, como sempre, operários, comerciários, domésticas, bancários,
metroviários, metalúrgicos, desempregados, mas também servidores
públicos, professores, diretores de empresas, juízes, procuradores,
promotores, advogados etc., cujas prerrogativas poderiam ser “suspensas”
para atender a “vontade do povo”.
Como dito na decisão do Min. Teori, há uma “vontade da Constituição”,
sendo que o “imponderável é que legitima os avanços civilizatórios
endossados pelas mãos da justiça”.De forma bastante essencial, deve-se perceber que uma das principais pautas de todo esse imbróglio político atual é a destruição da Constituição Federal de 1988, notadamente no que ela representa de freio ao ideário neoliberal que avança mundialmente e conferir ao Supremo esse poder absoluto para passa por cima da Constituição põe em grave risco, sobretudo, a eficácia e mesmo a sobrevivência dos Direitos Sociais e Trabalhistas, até porque sem Cunha, como já se está dizendo, o Congresso não terá força para implementar as tais “reformas estruturais”, conservadoras, pretendidas pelo mercado.
Talvez não seja nada disso, mas é bom ficar alerta!
São Paulo, 06 de maio de 2016.
***
Jorge Luiz Souto Maior participou, junto com os juristas Marcus Orione, Flávio Batista e Pablo Biondi, do debate de lançamento de A legalização da classe operária,
de Bernard Edelman, uma análise extemporânea de como o ímpeto
revolucionário da classe trabalhadora aprisionou-se na armadilha do
direito. Regulamentação da jornada de trabalho, férias remuneradas,
reforma da dispensa, direito de greve, reconhecimento da organização
sindical… E se todas essas históricas conquistas trabalhistas no âmbito
jurídico representassem na verdade momentos fundamentais da captura
política da classe trabalhadora? Confira a gravação integral do debate
na TV Boitempo abaixo:
DEBATE: A legalização da classe operária / Orione, Souto Maior, Biondi e Batista
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.
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