Expansão do capital e crise estrutural no Brasil. Reflexões sobre a reestruturação política e a crise social
12 de maio de 2016
O elenco de reestruturações é enorme, exaustivo e são todos aprovados no Congresso e salvaguardados pelo manto do impeachment.
A melhor maneira de sujeitar um povo consiste em lhe dar a ilusão de que participa de decisões!
Errico Malatesta
Las manifestações de junho de 2013 foram chamadas pelos jovens do
Movimento Passe Livre (MPL) para o que seria mais uma jornada de lutas
pela Tarifa Zero. No entanto, o desfecho do episódio, que acabou se
tornando um divisor de águas da história recente do país, pouco guardou
do apelo verdadeiramente popular e combativo daquele momento original
efervescente. Uma horda de jovens reacionários, patrocinados por
empresas e agências de “difusão democrática” norte-americanas,
articulados à mídia do Instituto Millenium (Editora Abril, Folha de São
Paulo, Estado de São Paulo e Rede Globo) e à Polícia Militar, toma as
ruas com uma pauta anticorrupção moral e agressiva. Aí é que indivíduos
indignados, mais ou menos politizados e mais ou menos alinhados à
política neodesenvolvimentista do PT, preocupados principalmente com a
queda vertiginosa dos índices de popularidade do governo de Dilma
Rousseff, começam a disseminar o medo às ameaças que rondam a democracia
no Brasil. Desde ali se instaura uma “batalha campal” entre uma
esquerda institucional/governista e uma direita golpista e exitosa.
Apesar de tudo, não nos parece que o Estado de Direito entre em
questão por causa do golpe de que se revestiu o impeachment de Dilma
Rousseff [1]. Os acontecimentos palacianos apenas confirmam a latência
do Estado de Exceção, este uma quase regra recorrente praticada neste
país de tradição autocrática. Seus alvos preferenciais vêm sendo
camponeses, indígenas e quilombolas, a população pobre e negra das
periferias urbanas, os trabalhadores que perdem empregos, direitos,
inclusive a liberdade de manifestar sua insatisfação, e sua condição de
antagonista do capital na luta de classes.
Sobre este último ponto, quase sempre negligenciado, é importante
esclarecer que a política de consenso do PT, que utiliza a luta de
classes como trampolim para a política parlamentar, foi decisiva para a
perda da identidade classista dos trabalhadores brasileiros. No decorrer
destes últimos 13 anos, e por determinação do Banco Mundial, os termos
trabalhadores, classe trabalhadora, desaparecem do discurso e das
políticas governistas. Desde o primeiro mandato de Lula, o governo vem
reduzindo-os todos à condição de pobres dependentes da tutela do Estado.
Por meio de políticas sociais focalizadas, insuflou neles o fetiche
pelo consumo e uma corrosiva consciência pequeno-burguesa. O resultado é
uma perigosa desertificação ideológica.
Mas, a governabilidade petista também tem responsabilidade direta
em casos de violação da liberdade seja por omissão, quando os ataques
ocorrem nos estados da União, seja por participação direta, caso do
protagonismo brasileiro na Minustah — tropas da ONU que ocupam o Haiti.
Esse também é o caso da proposta apresentada pelo governo e recentemente
aprovada Lei 13.260/2016 [2], a chamada Lei Antiterrorismo, dispositivo
conveniente ao controle repressivo da real crise brasileira que ocorre
de modo determinante na esfera social.
Vivemos o inferno astral de uma crise, ou melhor, de uma
reestruturação na esfera política que traduz uma ruptura radical com os
resíduos dos direitos humanos formais que se forjaram por aqui. Crise é o
argumento que justifica o paulatino esvaziamento da função mediadora do
Estado que progressivamente torna-se instrumento direto do capital
transnacionalizado. O fenômeno não chega a ser estranho ao capitalismo
dependente à brasileira, apenas o aprofundamento do caráter
antidemocrático e antissocial de um país cada vez mais submisso, cada
vez mais submetido às determinações do capital monopolista
transnacionalizado.
Neste dia 17 de abril de 2016 completou-se 20 anos do massacre de
Eldorado dos Carajás, Pará, quando 21 sem-terras foram mortos e outros
69 feridos e mutilados em tocaia montada pela polícia a mando de
fazendeiros locais. Lamentavelmente, neste mesmo mês de abril, a
tragédia foi lembrada com os assassinatos dos acampados do MST, Vilmar
Bordin e Leomar Hurback, no dia 7, em Quedas do Iguaçu, Paraná, e do
líder do MST, José Bernardo da Silva, no dia 24, em Ibimirim,
Pernambuco. Nos dois primeiros casos, o modus operandi foi o mesmo:
emboscada policial e, no terceiro, o “serviço” foi feito por
pistoleiros, todos a mando do capital.
Os fatos reacendem a atenção para a escalada da violência no campo
que, em 2015, registrou 50 assassinatos, a maioria cometida na região
Norte do país, sendo 21 em Rondônia e 19 no Pará. Somente nos primeiros
quatro meses deste ano já são 13 mortes violentas envolvendo
principalmente lideranças indígenas, posseiros, quilombolas, pescadores,
agricultores, ribeirinhos, sem-terras, religiosos e ambientalistas em
luta eterna pela regularização fundiária. Um dos casos mais impactantes
ocorreu em 2015, quando uma família teve cinco membros, incluindo
crianças, assassinados com golpes de facão e tiros em Conceição do
Araguaia, também no estado do Pará. Dos 1270 casos de homicídios
registrados no campo entre 1985 e 2015, apenas 108 foram julgados,
“menos de 10% deles, e somente 28 mandantes dos crimes e 86 executores
acabaram condenados por seus crimes. Um total de apenas 114 pessoas
punidas em um período em que ocorreram, por baixo, 1.714 assassinatos”.
O quadro fica ainda mais preocupante com a lista divulgada pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2011, onde constavam 55 ameaçados
de morte, dos quais 207 já haviam recebido ameaças reiteradas vezes.
Supõe-se que, desta lista, muitos já tenham sido eliminados e outros
tantos incluídos.
Entre os indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
apontou um crescimento de 130% no número de assassinatos cometidos de
2013, com 53 mortes, a 2014, com 138 mortes, sendo 48 no Matogrosso do
Sul e 37 no Alto do Rio Solimões, locais onde ocorrem retomadas de
terras envolvendo várias etnias. Além disso, são cotidianas as denúncias
de abuso do poder, ameaças e tentativas de morte, lesões corporais,
incêndios criminosos de moradias e casas de reza, racismo e violência
sexual. Outro dado chocante de 2014, é que, por omissão do poder
público, a paralisação nas demarcações e a situação de indigência de
grande parte da população indígena foi causadora da morte de 785
crianças entre 0 e 5 anos.
Não pode ser coincidência que o recrudescimento da violência no
campo aconteça justamente após a aproximação de Katia Abreu com o
governo de Dilma em 2011 e sua nomeação à frente do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento – no início de 2015. Com a palavra
os movimentos sociais de luta pela terra que ainda insistem em
manter-se nas franjas do petismo.
Nas cidades, a situação evolui de forma não menos crítica. Conforme
a Anistia Internacional, entre 2004 e 2007, ocorreram 192 mil mortes
por assassinato no país. Somente em 2012, foram 56 mil assassinatos dos
quais 77% eram negros e 30 mil eram jovens. Ou seja, o Brasil eliminou
82 jovens por dia. O Mapa da Violência de 2014, publicado pela UNESCO,
mostra uma queda de 32,3% de homicídios entre jovens brancos e um
aumento de 32,4% entre jovens negros
7Não conseguimos encontrar dados nacionais mais recentes, mas pela
amostra fornecida pelos estados, cresce assustadoramente a população em
situação de rua, bem como a quantidade de moradores e moradoras nesta
condição que são alvos de violência e de assassinatos por tiros,
facadas, apedrejamento, espancamento ou queimados. Em São Paulo, por
exemplo, somente no primeiro semestre de 2015, 590 pessoas foram mortas
de modo violento, em não poucos casos, pelo envolvimento de policiais.
O flagelo social brasileiro é potencialmente maior quando se
constata que os principais setores da produção no Brasil que atuam em
agronegócios, mineração, construção civil e indústria têxtil são também
os principais responsáveis pelo recrudescimento do trabalho escravo em
todo território nacional. Conforme a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), estima-se que, em média, são empregados 25 mil
trabalhadores em situação de escravidão por ano, alguns dos quais
resgatados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho. Ironia da
história é que a prática cada vez mais recorrente, abusiva e necessária
ao desenvolvimento no Brasil e no mundo é considerada crime não por
responsabilidade do sistema, mas de “maus empresários”.
Pior. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicilio (PNAD),
entre 2013 e 2014, a incidência do trabalho infantil, outro “crime de
maus empresários”, aumentou 4,5%, uma tendência que possivelmente irá se
repetir nos próximos anos. No mundo, isso representa o número alarmante
de 3,3 milhões de crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos, trabalhando,
sobretudo no campo (62%). Considerando que a legislação brasileira
considera ilegal o trabalhador com menos de 14 anos, o trabalho infantil
ilegal (entre 5 e 13 anos) atinge 554 mil crianças não remuneradas no
país, muitas das quais em situação de escravidão.
O número de desempregados no trimestre entre janeiro e março de
2016 atingiu 11,1 milhões de trabalhadores, o que representa um aumento
de 38,9% com relação ao mesmo trimestre em 2015, conforme a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (PNADC-IBGE). Com isso, a taxa de desemprego
chegou à casa de 10,9% [3], o maior da série histórica da PNAD iniciada
em 2012. Neste mesmo período, o setor privado “enxugou” 1,435 milhão de
trabalhadores com carteira assinada e outros 327 mil em outros regimes
de contratação. E o rendimento médio real habitual recebido em todos os
trabalhos recuou 4,1% em média, chegando a 8% em alguns setores.
O quadro se agrava substantivamente com as medidas fiscais,
privatizações, liberalizações e desregulamentações que vêm sendo
aplicadas com mais sintonia do que podemos imaginar pelos governos
federal, estaduais e por um Congresso Nacional marcado por absoluta
miséria moral[4]. Em 2015 projetou-se o maior ajuste fiscal da história
do país que, em termos nominais, buscou reorientar o montante de R$ 70
bilhões, antes destinados a áreas essenciais, para a realização do
superávit primário, isto é, para o pagamento do sistema da dívida
pública. Meta de superávit, entretanto, frustrada pelo intenso efeito
recessivo do próprio ajuste, o qual repercutiu negativamente sobre a
atividade econômica que, de acordo com o IBGE, registrou queda de 3,8%
no Produto Interno Bruto (PIB) com relação a 2014, o maior recuo desde
1990. Consequentemente a arrecadação teve seu pior resultado desde 2010
segundo a Receita Federal.
Em março de 2016 entrou em ação um ajuste fiscal que, pretende-se,
irá realizar superávit primário de R$ 64,9 bilhões para pagar o serviço
da dívida pública. Como se não bastasse, projeta-se ainda um ajuste
estrutural, através do PL 257/16 que propõem contrarreformas
constitucionais e estimula a privatização de bens públicos, a
terceirização, avanços no processos de Desvinculação das Receitas da
União (DRU) [5], desmantelando o sistema de receitas vinculadas que
obriga a união, os estados e municípios a investir um mínimo percentual
do orçamento em saúde e educação, o fim dos reajustes indexados que
preservam, entre outros, o poder de compra do salário mínimo e imposição
legal para os gastos da união por meio de um teto anual para as
despesas públicas não financeiras. Ou seja, estão criando um dispositivo
de ajuste fiscal eterno e automático que tende a restringir ainda mais a
capacidade do Estado brasileiro realizar política econômica,
demonstrando sua total captura e subserviência ao sistema financeiro. Em
suma, está em curso um conjunto de contrarreformas que coloca o país de
joelhos sem brios poupados ante os credores da dívida pública.
Vale ressaltar que no ano de 2014 somente os juros e encargos de
uma dívida pública indevida e assaz duvidosa consumiu 45,11% do total
dos recursos federais ou R$ 978 bilhões. Em 2015, os recursos empenhados
com o pagamento do serviço da dívida consumiram R$ 1,356 trilhões ou
47% dos recursos totais arrecadados. No mesmo ano a saúde ficou com
3,98% e a educação 3,73% dos recursos totais. Não há lugar para dúvidas,
ajustes fiscais sobre os gastos primários não financeiros são inócuos,
principalmente quando constatamos que dos R$ 613,035 bilhões (10,38% do
PIB) de déficit nominal acumulado no ano de 2015, apenas 18,15%
correspondem aos gastos primários, e que, portanto, 81,85% do déficit
teve origem nos gastos financeiros fundados no sistema da dívida [6]. A
Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) pagou em média, no ano de 2015,
taxa de juros implícita [7] de 26,1% ao mês. Em janeiro de 2016 os juros
implícitos alcançaram a assombrosa marca de 31,9% a.a. Apesar de tudo, o
poder executivo vetou uma emenda à lei do PPA (Plano Plurianual)
2016-2019 que versava sobre a realização de auditoria da dívida pública
federal [8].
Somam-se a isso as Medidas Provisórias (MPs), Projetos de Lei (PL),
Emendas Constitucionais (EC) [9] e etc. que afetam diretamente o mundo
do trabalho, entre as quais se destacam as Leis ns. 13.134/15 e
13.135/15 decorrência das MPs 664 e 665, que dificultam e diminuem a
possibilidade de obtenção de seguro desemprego e aposentadoria; o
Projeto de Lei da Câmara (PLC) 30/2015 a lei da terceirização sem
limites que permitir a terceirização das atividades-fim de empresas; a
mudança no caráter dos investimentos dos fundos de pensão, liberando
aplicação de recursos para especulação financeira; a Lei n. 13.189/15
legada da MP 680, também conhecida como Programa de Proteção ao Emprego
(PPE), que permite diminuir a jornada de trabalho e o salário em até 30%
e muda o pagamento dos abonos salariais do PIS/PASEP. A EC 81/2014 que
regulamenta o trabalho escravo atenuando e abolindo penalidades cabíveis
do Código Penal.
Outras tantas propostas terão impacto avassalador em vários setores
da sociedade brasileira como aquela que menciona o fim da união
aduaneira com o Mercosul e a abertura comercial com os EUA; a Proposta
de Emenda à Constituição, PEC 171, que reduz de 18 para 16 anos a idade
penal para crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida
de morte; a PEC 215 que confere ao Congresso Nacional a competência
exclusiva da aprovação de demarcação das terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios e revisão das demarcações já homologadas.
Projetos de Lei que incidem diretamente sobre a liberdade dos
indivíduos, como o PL 867, que impede que o professor aborde questões
políticas em sala de aula; sobre a soberania nacional, como PL 131, que
tramitou em regime de urgência no Senado e visa transferir para
multinacionais os lucros com a exploração dos recursos do pré-sal; sobre
desregulamentações com forte impacto social, como a PL 5807, que define
um novo marco regulatório para o setor de mineração no Brasil abrindo
territórios das comunidades tradicionais para a exploração extrativa;
sobre impactos educacionais, como o Plano “Brasil Pátria Educadora” [10]
que destina grande parte dos recursos públicos da educação para
instituições privadas; sobre o recrudescimento da repressão como a Lei
13.260/201, sobre a qual nos referimos antes, que pelo substitutivo do
senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) pode caracterizar como terroristas as
manifestações políticas, equiparando a ocupação de qualquer bem público
ou privado ao uso de explosivos nucleares.
Dragagem-do-Rio-Madeira-apresenta-irregularidades-denuncia-parlamentarAs
medidas são parte de um plano completo de ação chamado Agenda Brasil,
apresentado pelo Senado, em agosto de 2015, para “solucionar a crise” e
ampliado pelo plano Ponte para o Futuro elaborado pela fundação Ulysses
Guimarães do PMDB a ser adotado num possível governo de Michel Temer. Aí
se prevê 1) a proteção legal para investimento privado em concessões e
privatizações na forma de Parcerias Público Privadas (PPP), através do
desmonte das agências que põem limites aos impactos ambientais e
sociais, flexibilizando as leis trabalhistas, desregulamentando a
atividade extrativa, a proteção ambiental e do patrimônio histórico e
retrocedendo na demarcação das terras indígenas, bem como estimulando
megaeventos em detrimento do bem público e relativizando os estudos de
impactos sociais e ambientais nas obras de infraestrutura; 2) a busca de
equilíbrio fiscal por meio de um ajuste estrutural com a redução de
impostos sobre o patrimônio e aumento de impostos sobre a renda, pela
privatização de patrimônio público, pela contrarreforma previdenciária,
tornando o sistema orçamentário impositivo, desvinculando totalmente os
gastos constitucionais, findando com todas as correções indexadas como a
política de valorização do salário mínimo, instituindo o chamado
orçamento base zero que define déficit nominal zero, isto é, os gastos
primários terão necessariamente de realizar mega superávits para
adequar-se aos volumosos gastos financeiros, mesmo que isto implique no
corte e/ou descontinuação de projetos sociais e investimentos públicos,
pela criação de um organismo institucional independente e autônomo
voltado para a realização, avaliação e acompanhamento da política fiscal
e orçamentária com superpoderes deliberativos e executivos para
suspender, reorientar e vetar a destinação dos recursos púbicos, pela
caracterização do investimento das estatais como gasto público, pela
impossibilidade de ajuste salarial para os servidores públicos; 3) o
desmonte da proteção social que acaba com o princípio da gratuidade do
Sistema Único de Saúde (SUS) e realoca os investimentos em educação para
o pagamento da dívida pública; 4) a isenção de impostos para as
empresas, desoneração delas pela redução da folha de pagamento e acesso a
fontes privilegiadas de financiamento público.
Como se vê, o elenco de desmontes, melhor, reestruturações, é
enorme, exaustivo e, neste exato momento da nossa história, são todos
aprovados no Congresso e salvaguardados pelo manto do impeachment.
Alguns remetem a problemas mais imediatos, outros, a maioria, visa
atender às demandas do novo momento de expansão e acumulação do capital
em âmbito mundial. O processo é característico de uma crise que na sua
essência não é passageira, nem se coloca nos termos de uma oposição
entre financeirização e industrialização, entre internacionalismos e
nacionalismos. A solução não se encontra na retomada de um tipo
neo-pós-keynesiano de crescimento, como preconizam ideólogos,
sindicalistas e líderes de movimentos sociais, romanticamente apegados a
um passado e um projeto de organização de massas que já esgotou – de
modo lamentável – todas as suas possibilidades históricas. Nessa medida,
concordamos com a perspectiva de Plínio de Arruda Sampaio Jr. que
argumenta na seguinte direção:
A depressão dos investimentos não decorre da punção do lucro do
capital industrial por capitais “parasitários” que se reproduzem no
mercado financeiro. É a queda na taxa de lucro, provocada pela própria
expansão ilimitada da produção, que paralisa a acumulação de capital e
estimula a formação de processos especulativos na esfera da circulação.
Ao revelar a existência de forças produtivas incapazes de sobreviver às
novas condições da concorrência, ou seja, ameaçadas de violenta
desvalorização, a queda na taxa de lucro explicita a presença de um
excedente absoluto de capital sem condições de voltar à esfera produtiva
para ampliar a extração de mais-valia pela intensificação da
produtividade do trabalho [11].
A crise de que falamos é estrutural não porque esteja ocorrendo uma
momentânea paralisia produtiva ou algum refluxo da hegemonia
financeira. A crise é estrutural justamente pelo agigantamento autista e
avassalador do capital. E o alicerce está na presunção de ilimitada e
bárbara superexploração da força de trabalho e da natureza, pois se
assim não fosse, não haveria necessidade de se impor com tanta avidez e
sob tantos véus as muitas desregulamentações trabalhistas, ambientais e
societais acima arroladas.
Sim, o Brasil é a bola da vez, assim como há pouco foi a Grécia.
Saem da cena os projetos de integração física da América do Sul – a
IIRSA e a UNASUL [12], que representaram o ascenso do capital nos países
latinos sob a batuta de governos “progressistas”, “nacionalistas” e
“populares”, entre os quais o PT de Lula foi liderança inconteste.
Entram o TISA, o TTIP e o TTP [13], acordos que impõem regras
internacionalistas, com hegemonia absoluta dos Estados Unidos. Preterem
os BRICS para atingir a China e a Rússia, mas o grande perdedor vem
sendo, em particular, o Brasil com seu subimperialismo regional e o
recrudescimento da sua condição periférica.
Entre um e outro projeto, vivemos a transição de um processo que
começou com uma ditadura militar-empresarial e que, na atualidade,
certamente completará o caminho rumo ao inferno. Seu legado, como
dissemos, é uma posição ainda mais subalterna na Divisão Internacional
do Trabalho (DIT) que emerge de nossa superespecialização produtiva
agroexportadora e extrativa acelerada na década de 1990 e reiterada nos
anos 2000.
Eis a realidade brasileira e frente a ela, neste ano de 2016, a
situação das classes subalternas só se agrava. Pois, não basta
desempregar, empobrecer, tirar direitos. É preciso aliená-las de
qualquer bem público — educação e saúde em avançado processo de
privatização mais ou menos silenciosa —, constrangê-las e reprimi-las em
suas insatisfações.
As adversidades que povoam seus mundos são gigantescas e sombreiam
cada vez mais os modestos benefícios a elas destinados pelas políticas
de alívio social do último período da estratégia neoliberal de
desenvolvimento [14], também conhecido por neodesenvolvimentismo. A
falta de investimentos públicos em obras de saneamento básico e
infraestrutura nas periferias urbanas degradam o ambiente e provocam a
proliferação de pragas endêmicas. Dengue, zika, chikungunya,
microcefalia têm endereço social. O transporte coletivo é precário e
caro. As permanentes remoções humanas, pautadas no interesse da
especulação imobiliária, estão entre as causas da criminalização e do
controle militarizado que se exerce sobre a população das áreas
afetadas. O mesmo acontece com os atingidos pelas obras do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC I e II), pela extração mineral,
construção de barragens e invasão dos agronegócios. Expressões do
caráter antissocial e antidemocrático das políticas de investimento
público e privado.
Diante disso tudo, que objetivos e esperanças podem ainda mover a
grande massa proletarizada, superexplorada e em processo de
empobrecimento no país? [15] Será que os apelos politicistas das
manifestações pró e contra impeachment fazem algum sentido para ela?
Arriscamos dizer que essas massas são os sujeitos consciente e
inconscientemente ausentes das ruas polarizadas em torno dos falsos
dilemas que anteparam a reestruturação da política comandada pelo
capital em expansão. Suas almas vêm sendo encarniçadamente disputadas,
de um lado, pela ilusão de que a permanência de Dilma seria a garantia
de um suposto Estado democrático de direitos, direitos que ela, seu
partido e as alianças espúrias que fizeram e que hoje escorraçam o PT do
Planalto, se encarregam de golpear. Por outro lado aquelas mesmas almas
se enfrentam com o irracionalismo crítico do fascismo fundamentalista,
ufanista, racista, machista e homofóbico.
Somos sim contra o impeachment porque temos consciência dos anos
duros particularmente que advirão ao golpe. Por isso mesmo, consideramos
que a melhor resposta à crise é dada pelo ascenso de outras lutas mais
substantivas. Segundo os dados publicados em dezembro de 2015 pelo
Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG‑Diesse), as greves na esfera
privada envolvendo o setor industrial, de serviços, do comércio, rural e
outros setores adjacentes tiveram protagonismo representando 54% do
total das 2050 greves registradas em 2013. Um crescimento de 138,4% ante
2012. Suas pautas estiveram quase sempre associadas ao descumprimento
dos direitos sociais e trabalhistas, além do pagamento de salários
atrasados que, segundo Ruy Braga, é “um indício claro da deterioração
das condições gerais de reprodução do regime de acumulação.”
Outro dado importante é que houve uma “verdadeira explosão de
greves ocorrida no domínio que acantona com mais frequência os grupos de
trabalhadores não qualificados ou semiqualificados, terceirizados,
sub-remunerados, submetidos a contratos precários de trabalho e mais
distantes de certos direitos trabalhistas, isto é, o setor de serviços
privados”. Que apresentou um avanço especialmente intenso com um volume
de greves 332% maior entre 2012 e 2013.
Las greves em 2014 e 2015, dado o aprofundamento da crise econômica
e política, foram seguramente maiores e mais duradouras com
continuidade e expansão nas categorias tradicionais como metalúrgicos,
professores, bancários, correios e petroleiros. E sua aceleração envolve
inclusive trabalhadores dos serviços estratégicos, como rodoviários e
garis.
Particularmente interessante é a intensificação das lutas de
retomada dos indígenas que, em confronto direto com o capital, e diante
da falência da FUNAI, trazem uma perspectiva ofensiva e
não-institucional de autodemarcação de terras.
Ainda, o surpreendente movimento pela Tarifa Zero do Movimento
Passe Livre (MPL), em 2013, e as lições de organização dadas durante as
ocupações realizadas pelos estudantes secundaristas contra o desmonte da
educação pública em São Paulo e Goiás em 2015. E agora no Rio de
Janeiro.
Ainda em 2015 tivemos a mais longa greve da história entre os
professores do ensino público do Estado de São Paulo que durou 3 meses, e
que se somou às greves de professores em 5 estados da federação. Do
mesmo modo 57 das 59 instituições de ensino superior público federais
também registraram, em 2015, a maior greve de sua história, que acabou
por se alastrar para 33 dos 37 institutos e escolas técnicas federais.
Além da greve nacional dos bancários que paralisou quase 60% das
agências bancarias em todo o país, chegando a 85% em algumas regiões.
Atenção também para os movimentos e coletivos da periferia que
trazem, para o centro dos conflitos, pautas historicamente ausentes dos
projetos de transformação social. Trazemos aqui a indissociável
perspectiva social dos negros e das mulheres que, a partir de suas
lutas, não pode mais ser ignorada por qualquer projeção realmente
revolucionária. São tempos difíceis mas, esperançosos, que abrem a
possibilidade de autonomia para redefinir os sentidos da práxis política
e desburocratizar a luta de classes. Muito possivelmente caminhamos
para a construção de um outro país, um país de conflito e luta. Por
isso, finalizamos com as palavras de Engels que caem como luva para a
ocasião:
Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições
sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu
em insensatez e a benção em praga, isso não é mais que um indício de
que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram-se
silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem
social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E
assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente
que conter-se — mais ou menos desenvolvidos — os meios necessários para
pôr termo aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da
cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos
materiais da produção, tal e qual a realidade oferece [16].
Notas
Este artigo contou com a colaboração do Coletivo Canudos de Araraquara.
Maria Orlanda Pinassi é professora de sociologia, na FCL/UNESP Araraquara.
Felipe Augusto Duarte é professor, economista e membro do Coletivo Canudos de Araraquara.
[1] No último dia 17 de abril, a Presidente da República, sem
qualquer acusação real sobre sua conduta pessoal ou pública, foi
submetida à verdadeira condenação sumária por uma bancada que tem 60%
dos seus membros envolvidos em algum tipo de irregularidade mais ou
menos grave. Além disso, “na votação do último domingo, 477 dos 513
deputados votantes só chegaram à Câmara graças aos votos do partido, da
coligação ou de colegas mais votados.”
[2] Lei apresentada pelo poder executivo em julho de 2015 e
aprovada no senado e na câmara dos deputados em caráter de urgência no
dia 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art.
5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de
disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de
organização terrorista. Disponível aqui.
[3] Segundo a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) realizada pelo
DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos) e a Fundação Seade, a taxa de desemprego, em fevereiro
de 2016, atingiu a média de 15,8% em quatro regiões metropolitanas e no
Distrito Federal.
[4] Uma breve nota sobre a questão. No último dia 17 de abril,
quando a Câmara dos Deputados, presidida por Eduardo Cunha, se reuniu
para votar o impeachment de Dilma Rousseff tivemos uma constatação da
indigência humana e política que decide sobre as leis no país. A próxima
será dada pelo Senado.
[5] A DRU já é parcialmente realizada, desde 1994, com a criação do
Fundo Social de Emergência (FSE). As desvinculações foram prorrogadas
até o ano de 2023 pelas PEC’s (4; 87; 112 todas de 2015).
[6] Sua série histórica encontra-se aqui
[7] A taxa de juros implícita que representa a média das taxas de
juros incidentes sobre passivos e ativos da Dívida Liquida do Setor
Público (DLSP), segundo o conceito definido pelo Banco Central do
Brasil. Sua série histórica encontra-se aqui
[8] Foi estabelecido pelo Artigo 26 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, que dentro
de um ano o Congresso Nacional deveria realizar a auditoria do
endividamento externo brasileiro. Auditoria que passados 28 anos ainda
não foi realizada.
[9] Interessante lista sobre estes ataques pode ser encontrada aqui.
[10] Veja-se, por exemplo aqui, os Projetos de Reorganização
Escolar que ocorrem por vários estados brasileiros que visam a
privatização do setor.
[11] Plinio de Arruda Sampaio Jr. A ditadura do grande capital.
[12] IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana) e da UNASUL (União de Nações Sul-Americanas), foram
colocados em prática pelo COSIPLAN (Conselho de Infraestrutura e
Planejamento) e pelo CEAS (Conselho de Energia da América do Sul).
[13] “O Trans Pacific Partnership (Tratado Trans-Pacífico, ou TPP
em sua sigla em inglês) e o Transatlantic Trade and Investment
Partnership (TTIP), que representam mais de 60% do PIB mundial. No mesmo
pacote está o Trade in Services Agreement (TISA), que envolve 50 países
e 68% do comércio mundial de serviços. Uma injeção de neoliberalismo
inédita na história.”
[14] Entende-se por estratégia de desenvolvimento políticas que
definem sua atuação no nível estrutural de longa duração e que tem por
essência a execução de profundas transformações socioculturais,
políticas e econômicas. Neste sentido importa ressaltar que estratégia
de desenvolvimento é definição de políticas de longo prazo e, portanto,
não pode ser reduzida a adoção de políticas econômicas, sejam elas
ortodoxas ou heterodoxas, que correspondem a necessidades conjunturais.
[15] Enquanto isso continua a crescer o consumo de produtos de luxo
no país. Entre 2006 e 2012 o mercado de bens de luxo expandiu-se 236%,
uma média de 39,3% ao ano. Joias, vinhos, roupas e carros de grifes
internacionais lideram as vendas de shoppings que verificam em setembro
de 2015 um aumento de 25% em comparação com o mesmo período de 2014. O
faturamento das grifes internacionais registrou elevação da ordem de 33%
na mesma base de comparação. O que reforça a sugestão de que o modelo
de consumo de massas da estratégia neoliberal de desenvolvimento dos
últimos 13 anos redundou na restrita modernização dos padrões de consumo
da população, com pouca mobilidade social e tímido processo de
redistribuição da renda pessoal que, entre outros, encobriu a forte
tendência a concentração da renda funcional em favor dos lucros.
[16] Friedrich Engels. “Do socialismo utópico ao socialismo
científico”, em Karl Marx e Friedrich Engels. Textos. (São Paulo:
Alfa-Omega, 1977), p. 44.
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