Eugênio
Aragão: “Estamos sentados sobre os escombros daquilo que foi nosso
sonho de construir um estado democrático de direito inclusivo,
socialmente justo e solidário”. (Foto: Divulgação)
Marco Weissheimer
Membro do Ministério Público Federal desde 1987, subprocurador da
República e ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff durante dois
meses, Eugênio Aragão é hoje um dos mais duros críticos dos
procedimentos adotados pela Operação Lava Jato que, em vários casos,
ultrapassaram as fronteiras da legalidade, como foi o caso da escuta da
presidenta da República autorizada e divulgada para a imprensa pelo juiz
Sérgio Moro. Em entrevista ao
Sul21, Eugênio Aragão
define a Lava Jato como “uma das operações mais tortuosas da história do
Ministério Público. “A gente sente claramente que os alvos são
escolhidos. Há delações claras em relação a outros atores que não
pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente não são nem
incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser perversa e
contra a dignidade da pessoa humana”, critica.
Para Eugênio Aragão, o Brasil vive uma onda de fascismo maior talvez
que a vivida no período da ditadura militar e o Judiciário e o
Ministério Público tem responsabilidade por isso: “O Judiciário tem um
problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem
transparência nenhuma e é muito alienado quanto ao déficit de acesso à
Justiça que existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo”. O
ex-ministro acredita que foram cometidos graves erros no recrutamento de
atores importantes nas instituições do Judiciário. “A maioria dos
ministros do STF têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião
pública”, exemplifica.
Aragão critica o discurso que afirma que tudo está podre, tudo está
corrupto, assinalando que esse é, historicamente, o discurso de todo
governo fascista. E reafirma suas críticas ao juiz Sérgio Moro, dizendo
que ele está ultrapassando os limites do Direito Penal. “É uma volta às
Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do
Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que
todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que
ocorria na Idade Média”.
Sul21:
Como o senhor definiria o momento político e social que o Brasil está vivendo hoje?
Eugênio Aragão: Nós estamos sentados sobre os
escombros daquilo que foi nosso sonho de construir um estado democrático
de direito inclusivo, socialmente justo e solidário. Temos que pensar
com toda a seriedade as causas disso que aconteceu e não nos perdermos
apenas na denúncia do golpe, que de fato ocorreu. Na última semana, o
presidente Temer confessou com todas as letras que o afastamento da
presidenta Dilma não se deu por razões de crime de responsabilidade, mas
sim para forçar uma mudança de programa de governo. Essa declaração é
de um caradurismo enorme, pois a presidenta Dilma foi eleita em uma
campanha da qual ele fez parte. Ele não pode querer derrubar a
presidente para impor um novo programa que nem diz respeito aquilo que a
maioria dos eleitores aprovou.
“O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma”. (Foto: Agência Brasil)
Não se trata de uma questão de ter simpatia ou não por Dilma, mas sim
de ter consciência e entender a seriedade do que está por vir aí.
Parece que a maioria da população brasileira está num estado de torpor e
de estupefação em função da rapidez dos acontecimentos, e não está
entendendo direito o que aconteceu e está acontecendo. Penso que é muito
importante fazermos essa reflexão sobre onde erramos, para permitir que
essas pessoas que hoje estão no poder assaltassem a democracia do jeito
que assaltaram.
Sul21:
O senhor já tem algumas hipóteses acerca da natureza desses erros?
Eugênio Aragão: Acredito que há um leque de erros
que até são normais. Quem está governando, principalmente quando governa
sob forte pressão, está olhando para a sobrevivência diária e, muitas
vezes, acaba perdendo a noção do conjunto de uma crise desse tamanho.
Acho que, entre outras coisas, houve escolhas erradas de pessoal e uma
articulação muito falha com o parlamento. Acredito também que poderíamos
ter feito muito mais para atender os movimentos sociais. Houve muita
decepção por parte de alguns desses movimentos, como o movimento dos sem
teto. Eles assistiram durante as obras da Copa e das Olimpíadas uma
verdadeira tragédia de retirada de bairros inteiros de população de
baixa renda. Esse processo de gentrificação urbana atingiu a população
mais pobre em praticamente todas as capitais. Aqueles que mais deveriam
tirar vantagem desses eventos internacionais acabaram sendo os maiores
prejudicados. Esses erros acabaram diluindo um pouco a nossa base de
apoio.
Sul21:
Além desses erros nas esferas do
Executivo e do Legislativo, não houve também uma mudança expressiva no
comportamento do Judiciário que contribuiu para o agravamento do
processo da crise?
Eugênio Aragão: O Judiciário tem um problema muito
sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma por
mais que se gabe de disponibilizar suas decisões na internet. O
importante não é publicar a decisão, mas sim o processo pelo qual se
chega a ela. E este processo não está disponível na internet. Não
aparece o advogado prestigiado em Brasília que pode colocar a mão na
maçaneta dos gabinetes dos ministros, entrar e falar com tapinhas nas
costas, coisa que advogados, digamos, menos aquinhoados do Rio, São
Paulo e outras cidades não podem fazer. O Judiciário é muito alienado
quanto ao déficit de acesso à Justiça que existe no Brasil. Parece que
vive em outro mundo.
Isso também tem muito a ver com as escolhas pessoais. Acho que foram
cometidos graves erros no recrutamento de alguns atores. Nós deixamos
que fossem para o Supremo e para o STJ as pessoas que melhor sabiam
fazer campanha junto a políticos, aqueles que melhor sabiam chegar perto
do círculo de poder central para vender o seu nome. Eu tenho uma ideia
sobre isso que já externei para a presidenta Dilma. O candidato ideal a
um cargo destes não é aquele que está numa verdadeira maratona para ser
indicado. A pessoa que quer muito essa indicação quer muito também por
uma questão de vaidade para o seu currículo pessoal. É como se o cargo
acabasse sendo uma cerejinha glacê em cima do chantili do seu bolinho. A
pessoa que tem esse perfil, quando é submetida a uma pressão muito
grande da opinião pública, por ser alguém que naturalmente gosta de ser
vista bonita, tem medo de queimar o filme dela. Em função disso, tem uma
dificuldade enorme de ser contra-majoritário, de não ceder a esses
apelos das ruas e apelos midiáticos.
É uma questão de escolha. O ministro ideal para ser escolhido é
aquele que você liga para ele dizendo que pensou no nome dele para ser
ministro do Supremo Tribunal Federal, perguntando se aceitaria e ele
responde pedindo dois ou três dias para refletir e conversar com a
família. Esse é o candidato ideal. Ele não estava batalhando para ser
indicado, não queria achar uma cerejinha para o seu currículo, mas sim
querendo ver o problema em toda a sua extensão. Ir para um lugar como
aquele não é uma festa, não é um congraçamento ou um galardão, mas é ir
para uma trincheira de uma batalha política. Uma batalha para manter
íntegra essa República.
“A maioria dos ministros do Supremo têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública”. (Foto: Divulgação/STF)
O meu nome foi cogitado, por duas vezes, para ir para o Supremo. Eu
tinha um receio muito grande em aceitar, pois não estava vendendo uma
ideia pessoal. Nestas duas ocasiões, eu não estava me vendendo como
ministro, mas sim me colocando apenas como uma opção entre várias outras
para tentar fazer algo de diferente. Mas eu nunca fiz campanha mesmo,
não fui visitar deputados, senadores ou ministros. A única coisa que fiz
foi uma conversa na Casa Civil com pessoas que eu conhecia. Coloquei
meu nome à disposição, mas nunca considerei uma possível indicação como
um destino da minha vida. Eu nunca tinha pensado nesta possibilidade até
que o doutor Rodrigo Janot, quando de sua campanha para Procurador
Geral da República, veio com essa história para mim. ‘Eugenio, por que é
que você não tenta ir para o Supremo Tribunal Federal’, disse-me. Na
ocasião, eu pensei em duas coisas. A primeira foi: será que esse cara
está tentando se livrar de mim? Conversei com algumas pessoas que me
disseram: ou você se coloca ou as pessoas que não têm as suas qualidades
vão se colocar. E fui conversando com algumas pessoas que eu conhecia,
mas sem fazer campanha.
Sul21:
Isso foi em que ano?
Eugênio Aragão: Foi quando a vaga foi ocupada pelo
Luís Roberto Barroso e, depois, pelo Edson Fachin. Foram as duas vagas
para as quais o meu nome foi cogitado pelo governo. Por razões
distintas, acabei não indo, mas isso não vem ao caso. Nunca me senti
depreciado por isso. Pelo contrário, continuei cooperando com esse
projeto político porque acreditava nele. Para mim, não se tratava de uma
questão de ir ou não ir para o Supremo ou de um projeto pessoal. Isso
não mudou nada na minha relação com o governo. Na época, quando os dois
nomes foram indicados eu falei para as pessoas que estavam me apoiando
que eram excelentes nomes. Não fiquei com nenhum tipo de mágoa ou
ressentimento por conta disso, o que acontece muito com pessoas que
achavam natural que fossem escolhidas e isso acaba não acontecendo.
A verdade é que esse sistema cria naturalmente uma dinâmica de grupo
no Supremo, com ministros que têm uma dificuldade muito grande de
enfrentar a opinião pública. São pessoas que sempre gostaram disso e que
construíram um currículo onde o Supremo Tribunal Federal é o ápice.
Isso é muito comum. Muita gente vai fazer doutorado para coroar o seu
currículo. Doutorado não é coroa de nada, mas sim é uma porta pela qual
você entra no mundo da pesquisa acadêmica. O doutorado não tem nenhum
significado para efeito de embelezamento do currículo. Até porque, em
dois ou três anos, a linda tese que você escreveu provavelmente vai
estar superada e ninguém mais vai querer ler. O que é importante é o que
você vai fazer com o seu doutorado em termos de pesquisa e ensino. É
para isso que ele serve e não para você sentar em cima de sua glória.
Para mim, o mesmo se aplica no caso do Supremo. O importante não é ir
para o Supremo, mas sim o que você faz com isso. Você vai ser apenas
mais um, acompanhando a manada do povo que está irado no estouro para
fora do seu cercado, ou você vai querer realmente fazer diferença e
assumir posições que, às vezes, podem até te deixar mal com a opinião
pública, mas que você acredita serem profundamente justas dentro da sua
consciência. O ministro Marco Aurélio, que nem foi escolhido pela
presidenta Dilma, é hoje uma das pessoas mais autênticas dentro do
Supremo. Tem o Teori também, que é uma pessoa de grande caráter e de um
trabalho sólido em termos de magistratura. Mas o ministro Marco Aurélio
realmente quer fazer diferença. Ele pouco se lixa em ser minoria, o que
ele quer é fazer aquilo que a consciência dele manda. É um excelente
magistrado. Ainda bem que o Supremo tem pessoas como ele.
Sul21:
O sociólogo português Boaventura de Sousa
Santos, em um recente artigo, definiu o que se passou no Brasil, do
ponto vista jurídico, como o triunfo de Carl Schmitt (da ideia da
primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (que defende o controle judicial
da Constituição). O senhor concorda com essa leitura?
“Para Carl Schmitt, vale a revogação da lei. A soberania schmittiana é uma soberania da violência”.
Eugênio Aragão: Com certeza. Eu citei Carl Schmitt
várias vezes nos últimos tempos para falar sobre o que está acontecendo
no país. Para ele, a soberania de um Estado se consubstancia no poder
que esse aparato tem de revogar as suas próprias leis e de criar o
Estado de Exceção. É no Estado de Exceção que o poder nu e cru – aquele
monopólio da violência pelo Estado – melhor se manifesta. A soberania
schmittiana é uma soberania da violência. Já em Kelsen, a ideia de
soberania repousa sobre a prevalência da lei. Para Schmitt, vale a
revogação da lei enquanto que, para Kelsen, vale a prevalência da lei.
Kelsen tem alguns problemas de excessivo formalismo, mas a lei é a
representação da vontade popular, da vontade política da nação,
construída através de um sistema democrático que escolhe aqueles que são
os legisladores. A soberania é a nossa capacidade de escolher aqueles
que darão curso à vontade da maioria política da nação, sem deixar de
respeitar a posição das minorias. Isso no Brasil desapareceu. Hoje, há
um total desrespeito em relação ao que foi acertado na eleição de 2014,
vencida pela presidenta Dilma.
Por mais que a diferença tenha sido pouco, Dilma venceu o segundo
turno e esse projeto era o da maioria da nação. A imprensa sempre
representou a presidenta Dilma de uma forma caricata. Mas quem a
conhece, quem trabalhou com ela, sabe que ela é uma pessoa preocupada,
carinhosa e solidária. Ela tem uma série de virtudes que a mídia nunca
apresentou. O que interessava era apresentar uma pessoa histriônica. A
presidenta Dilma é uma pessoa muito determinada e firme. Por vezes, ela
expressa a opinião dela com uma firmeza que pode chegar a ser entendida
por alguns como uma rudeza. Mas isso é o modo dela. Todos nós temos os
nossos modos. Se as manifestações do ministro Gilmar Mendes não forem
rudes, o que é rude afinal? E alguém dessa grande imprensa já
representou o ministro Gilmar como uma pessoa histriônica e rude?
Escolheram a mulher Dilma Rousseff para ser a histriônica. É uma
imagem falsa que as pessoas fazem dela. Ela não é isso, não. É apenas
uma pessoa muito firme. E ainda bem que é firme porque diante de tanta
chantagem, da qual foi vítima, para fazer coisas erradas, ela nunca
cedeu. Desde o início do governo dela em 2010, ela botou para correr
todo mundo que ela viu que estava ali querendo se dar bem e não para
atender o interesse público. Nós perdemos muito em qualidade de
governança. Naquele triste dia de 11 de maio, quando ela saiu e entrou o
novo governo, a diferença era gritante. De um lado, a saída da Dilma
com as lágrimas de gente de todas as origens, de índios, sem terra,
pessoas de classe média. Depois, entrou aquele grupo de urubus, homens
brancos e velhos vestidos de preto, assumindo aquele palácio como se
fossem donos dele, coisa que eles não eram, pois o afastamento da Dilma
era provisório.
Eles não levaram um minuto para começar a destruir todo o legado que
pudessem encontrar do PT. E o fizeram de forma perversa e grosseira.
Forçaram a porta, entraram e, de dedo em riste, foram dando esporro na
população inteira, dizendo que tudo estava errado e que iam mudar tudo
para implantar um Estado mínimo. Um Estado mínimo só serve para quem tem
dinheiro. Para quem tem plano de saúde particular e os filhos em
escolas privadas o Estado mínimo não significa grandes mudanças no
estilo de vida, Mas a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras
precisa do Estado para que os filhos vão à escola, para que possam ter
um atendimento de saúde, para que possam minimamente ter um transporte
decente, para que possam ter alguma esperança de, algum dia, ter um teto
melhor sobre suas cabeças e talvez um emprego mais digno. Essas pessoas
precisam de um Estado que faça políticas sociais, sim.
Para esses homens ricos de cabelo branco e ternos pretos que estão lá
agora os programas sociais não valem nada, não lhes dizem respeito.
Eles têm uma completa falta de sensibilidade em relação a isso. Talvez
não avancem o quanto gostariam de avançar, porque sabem que são
ilegítimos e tem medo da reação popular. Se dependesse deles revogariam
até a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. Mas eles vão
tentar fazer isso progressivamente, como quem toma sopa quente pelas
bordas. Não tenha dúvida disso.
“Esse é o golpe do 171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é o golpe do 171, do engodo”. (Foto: Beto Barata/PR)
Sul21:
Na sua opinião, o país está vivendo hoje um estado de exceção?
Eugênio Aragão: Não sei se é um estado de exceção.
Acho que é muito mais um estado de engodo. Um estado de exceção
significa que as leis, por conta de um risco iminente à segurança e ao
bem estar de todos, podem ser suspensas temporariamente. Não é disso que
se trata. Nós estamos vivendo um estado de engodo que quer se
perpetuar. A palavra golpe tem diversas acepções. Ela pode significar a
derrubada de um governo pela violência, através de uma ruptura
constitucional. Mas a palavra golpe também se aplica aquela pessoa que
perdeu dinheiro investindo num terreno que não existe. Esse é o golpe do
171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é o golpe do 171.
Houve a tentativa de se mimetizar um impeachment por crime de
responsabilidade quando todo mundo sabia que não era essa a causa e se
comportou de forma extremamente hipócrita.
Houve a tentativa de dizer que tudo está podre, tudo está corrupto, o
que, diga-se de passagem, é o discurso de todo governo fascista.
Hitler, quando assumiu o poder na Alemanha, também disse que a República
de Weimar era corrupta, podre e acabava com a pureza dos alemães.
Mussolini, quando assumiu, também chegou lá prometendo combater a
corrupção da monarquia. Em 1964, aqui no Brasil, foi o mesmo discurso.
Dizia-se que Juscelino e Jango tinham “assaltado o país”. E agora eles
vêm com esse discursinho de novo com a agravante de que ele é sustentado
por uma casta burocrática altamente remunerada, oriunda dessa mesma
classe média masculina que tomou conta do país, que elabora teorias de
sua cabeça a respeito de organizações criminosas com núcleo disso e
núcleo daquilo. Elaboram constructos mentais para divulgar a ideia de
que está tudo dominado.
Esses sujeitos estão deixando se usar. Esse discurso do combate à
corrupção serve muito bem para quem quer desconstruir a legitimidade de
um governo, mas na hora em que essa legitimidade está desconstruída,
tudo o que se quer é fazer sumir qualquer tipo de ação contra a
corrupção. Por quê? Porque a corrupção é um crime de controle, ou seja, é
um crime que só aparece quando você investiga. Agora, o novo governo
vai fazer de tudo para cortar as asas das investigações. No fundo, o
Ministério Público, ao aceitar ser instrumento dessa turma, deu um tiro
no pé, pois está se enfraquecendo. Isso vai ser mais rápido do que eles
pensam. Esse discurso do combate à corrupção é para convencer gente de
dois neurônios.
A corrupção existe em todos os países, em alguns mais, em outros
menos. O que cria a corrupção não é a ganância das pessoas, como afirma o
discurso moralista, mas sim os gargalos disfuncionais dos processos
administrativos. Quando é difícil você obter um resultado que você quer
na sua relação como administrado com a administração, você tende a
querer facilitar esse processo ou a criar algum tipo de atalho por meio
da distribuição de benesses para os funcionários. Isso é uma forma de
descarregar esse processo administrativo pesado. Há economistas que
sustentam que, às vezes, para o desenvolvimento de um país, a corrupção
pode ser até benéfica, caso o Estado em questão seja organizado de uma
forma tão pesadamente burocrática que seus processos de fiscalização e
controle emperram toda a economia.
Para você acabar com a corrupção, é preciso identificar onde estão
esses gargalos e tratá-los com transparência, impondo uma política de
compliance (agir
em sintonia com as regras) clara para a administração. Além disso, é
preciso acabar com as brigas corporativas que dificultam a vida do
administrado. Essa briga, por exemplo, envolvendo Ministério Público,
Polícia Federal, Receita, Defensoria Pública, Ibama e outros órgãos faz
com que o Estado acabe dando ao administrado ordens controversas e
contraditórias, deixando-o sem saber para onde andar. Esse problema deve
ser enfrentado de forma racional, com a cabeça fria, e não fazendo da
corrupção um crime hediondo, o pior de todos os crimes porque toma o que
é nosso, etc., etc. Esse discurso só serve para você estigmatizar
pessoas e arrumar um bode expiatório. Nenhuma sociedade fica bem dentro
de um conflito desses em que você qualifica algumas pessoas como impuras
e outras como puras.
O Ministério Público está se achando a pureza em pessoa, quando a
gente sabe que aqui as coisas não são bem assim. A Corregedoria enfrenta
enormes dificuldades. Na época em que fui corregedor só levava bola nas
costas com os malfeitos de colegas. Aqui tem tudo, menos santo. Somos
pessoas como quaisquer outras, com nossas virtudes e nossos vícios, mas
aqui as pessoas se acham acima do bem e do mal, podendo colocar o seu
dedo indicador acima das pessoas. Isso não resolve nada, apenas cria
tensão social, mal estar, ira e até violência entre as pessoas,
inclusive dentro das famílias. Infelizmente é isso que está acontecendo
no Brasil. A culpa por isso é desse tipo de atitude.
O fascismo se caracteriza pelo uso de argumentos extremamente
simplórios que parecem intuitivos, para pessoas de pouca inteligência. É
desse tipo de argumento que o fascismo se utiliza: “todo o judeu é
explorador”, “todo índio é preguiçoso” e coisas do tipo que vêm
acompanhadas por falácias enormes de modo a que pessoas desprovidas de
inteligência possam cair nesta farsa. O fascismo mobiliza para a
violência, ele mobiliza as pessoas para fora do seu normal. Ele é
essencialmente mau e perverso. Nós estamos vivendo uma onda de fascismo
que talvez não tenhamos visto nem na ditadura militar.
Juiz
Sérgio Moro recebendo prêmio de Jornal Roberto Marinho, dirigente do
Jornal “O Globo”: “ele está ultrapassando os limites do Código do
Processo Penal”, diz Aragão.
Sul21:
O senhor tem sido um crítico de vários
procedimentos adotados pelo juiz Sérgio Moro e vários procuradores da
Operação Lava Jato, como ocorreu recentemente com a denúncia apresentada
pelo procurador Deltan Dallagnol contra o presidente Lula? Como o
senhor definiria o atual estágio da Lava Jato?
Eugênio Aragão: A Lava Jato é uma das operações mais
tortuosas da história do Ministério Público. A gente sente claramente
que os alvos são escolhidos. Há delações claras em relação a outros
atores que não pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente
não são nem incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser
perversa e contra a dignidade da pessoa humana. Utilizar-se da condução
coercitiva quando não há resistência é de uma violência inominável. Não
adianta usar esse argumento cretino de que isso é feito para evitar
prévia combinação de depoimentos entre os intimados. Se eu sou intimado
na fase pré-processual, posso até calar a boca e voltar para casa. Se eu
quiser, em casa, combino com o resto e volto para a polícia. A condução
coercitiva não impede combinação de depoimento. Isso é uma lenda urbana
que o juiz Sérgio Moro criou. Mas isso não consegue esconder que ele
está ultrapassando os limites do Código do Processo Penal. Neste código,
a condução coercitiva só é prevista para aquele que resiste em
comparecer depois que foi intimado.
Pior ainda são as conduções coercitivas feitas com a presença da
imprensa que é convocada para o ato, expondo as pessoas. É uma volta às
Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do
Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que
todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que
ocorria na Idade Média. Não fazemos mais isso. O Estado tem que ser
tímido e recolhido quando ele usa o Direito Penal porque ele não sabe se
está realmente certo de que está fazendo Justiça ou não.
Sul21:
Dentro do Ministério Público, além da sua
voz que tem sido bastante enfática nesta crítica, há uma resistência
maior em relação a esses procedimentos?
Eugênio Aragão: Há outras pessoas que pensam como
eu. Pelo fato de eu ter sido ministro da Justiça durante os dois últimos
meses do governo Dilma e de antes de ter sido vice procurador geral
eleitoral, minha voz acaba soando mais forte. Mas a grande maioria do
Ministério Público hoje acha que a Lava Jato é a última Coca Cola do
deserto. Na última semana, o Conselho Nacional do Ministério Público,
que é o órgão de controle da nossa atividade, premiou a Lava Jato. E se
eu me queixar da Lava Jato para um órgão que previamente premiou essa
operação, como é que fica? Como é que um órgão de controle pode premiar
uma operação que está sob severa crítica pública? Qual a isenção que
esse órgão terá na hora que precisar avaliar representações contra a
Lava Jato, se ela já foi premiada? As pessoas estão perdendo o senso de
limite.
Sul21:
O senhor referiu em vários momentos o
papel da mídia neste processo envolvendo a derrubada da presidenta Dilma
e a Operação Lava Jato. Como definiria esse papel?
Eugênio Aragão: A grande mídia comercial brasileira
depende muito das verbas publicitárias dos governos. Essa mídia
comercial está cartelizada politicamente. Agora estão com o tom de
levantar a bola para o governo Temer fazer o gol e de seguir satanizando
o PT e o que significaram os governos Lula e a Dilma para o Brasil. A
nossa sorte hoje é que muitas pessoas estão deixando de ler esses
jornais. Na minha casa, não entra nem Folha de São Paulo, nem Estadão,
Globo ou Correio Braziliense. Eu me informo através da internet que traz
uma enorme variedade de acessos à informação. Além dos chamados “blogs
sujos” eu posso ler a imprensa estrangeira. Tenho a opção de ler artigos
sérios. Para quem tem algum tipo de discernimento, a opinião de jornais
como Folha, Estadão e Globo não tem o peso que tinha antigamente. Tanto
é assim que esses jornais estão todos atravessando uma crise financeira
violenta. Eles não servem mais nem para se informar sobre coisas
básicas. Se eu quero saber se uma determinada loja abre no fim de
semana, eu busco essa informação pela internet.
Sul21:
Ainda sobre a Lava Jato, há quem
relacione essa operação hoje a interesses de empresas e mesmo governos
de outros países em riquezas como a do pré-sal. Na sua avaliação, há uma
espécie de dimensão geopolítica nesta operação?
Eugênio Aragão: Não sei. Eu acredito que o
Ministério Público pode estar sendo usado, mas o Ministério Público é
tão endógeno na sua visão, tão perdido em cima do seu próprio umbigo que
não sei nem se tem inteligência para isso. Eles podem estar sendo
usados, sabendo ou não sabendo. Não existe gente preparada em Curitiba
com essa estratégia toda para bolar uma coisa dessas.
Sul21:
E quanto ao juiz Sérgio Moro?
Eugênio Aragão: Também não acredito que ele tenha
capacidade para isso. O juiz Sérgio Moro é uma pessoa extremamente
vaidosa que encontrou um nicho para se exibir à sociedade brasileira.
Isso faz parte de um projeto pessoal. Ele gosta de ter essa cara de mau,
de um sujeito inabalável nas suas convicções, um verdadeiro inquisidor
mor. Ele adora fazer esse papel. Mas esse é um problema que ele tem que
resolver com o seu psicólogo.
Sul21:
Diante desta conjuntura, qual cenário de futuro é possível prever?
Eugênio Aragão: Eu acredito que, depois que essa
crise amenizar, o Ministério Público e o Judiciário terão que ser
passados a limpo. Não podemos mais fazer o que a gente fez. Isso colocou
o país de cabeça para baixo. Quase um milhão de empregos já foram
perdidos nesta crise. E os desempregados não são os procuradores da
República nem os juízes federais. Você faz uma operação desse porte,
destruindo a economia e está pouco se lixando com o que acontece porque o
seu está garantido no final do mês. Só que se a economia quebra, o
Estado também quebra e aí o Estado não vai mais pagar a eles o que eles
acham que valem. Isso precisa ser repensado urgentemente. O
corporativismo mata a governabilidade no Brasil.
Sul21: Mas será possível que o Ministério Público e o Judiciário se repensem a si mesmos?
Eugênio Aragão: Não sei, não sei, mas se tiver uma Constituinte, a gente repensa, não é?